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“Pax tibi Marce, evangelista mevs” (A paz esteja contigo, Marcos, meu evangelista). Segundo a lenda, foi assim que Marcos, o Evangelista, foi saudado por um anjo quando chegou à cidade de Veneza. Foi também com essa frase que, quase dois mil anos depois, o diretor italiano Stefano Poda transportou o público do Theatro Municipal de São Paulo para a Sereníssima República de Veneza.

Tendo como capital a própria Veneza, onde ficava o Doge, a Sereníssima existiu entre os séculos X e XVIII. Compreendia uma região que ficava em torno do Mar Adriático, chegando até à Ístria, no leste da Croácia, conforme ilustrado na figura abaixo. A costa da Íltria era ocupada por piratas que, por volta do ano 1000, foram expulsos por Veneza.  Pouco antes, porém, entre o fim do século IX a meados do século X, piratas invadiram a cidade de Veneza e raptaram 12 jovens que participavam de um casamento coletivo bem como as jóias que as adornavam.

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Era um costume vêneto dos séculos IX e X: todo dia 2 de fevereiro, dia da Purificação de Maria, era celebrado um casamento coletivo na igreja de San Pietro di Castello. Para o evento, eram selecionadas 12 noivas humildes e ornadas com belos vestidos e jóias. Naquele 2 de fevereiro, porém, cujo ano exato não se sabe, a invasão dos piratas deu o tempero que faltava para a tradição virar lenda, novela, ópera e até carnaval – a parada da Festa delle Marie (Festa das Marias) do carnaval de Veneza. Em 1869, cerca de um milênio mais tarde, o escritor italiano Luigi Capranica (1821-1891) publicou seu romance “La Festa Delle Marie: Storia Veneta del Secolo X“, cuja trama se dá em torno da ação dos corsários. E foi nesse romance que o compositor brasileiro Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e o libretista Antonio Ghislanzoni (1824-1893) basearam a ópera Fosca, estreada no Teatro Alla Scala em 1873.

Gajolo, irmão de Fosca, é o comandante dos piratas da Ístria. É ele quem, no primeiro ato da ópera, chega com o plano sobre o ataque durante o casamento. Faz, porém, uma importante advertência: “ninguém toque no ouro e nos paramentos consagrados a Maria Nossa Senhora…”. Além de introduzir a ética dos piratas, que permitia que se matasse ou roubasse desde que fossem respeitados os templos e objetos sagrados, a advertência revela certo tom anticlerical do libreto ou, pelo menos, uma denúncia à hipocrisia dos religiosos. Esse tema é ouvido, mais tarde, na abertura do terceiro ato da ópera.

Outro aspecto da ética dos piratas aparece logo adiante, quando Fosca pede a Gajolo que não liberte o prisioneiro Paolo, por quem ela estava perdidamente apaixonada e cujo resgate já havia sido pago. “No! No! Un pirata alle sue promesse non puó mancar!” (Não !Não! Um pirata não pode deixar de cumprir suas promessas!), respondem os piratas. Na orquestra e no coro ouve-se o que Mário de Andrade chama de tema dos corsários. “É o que inicia e termina a peça”, observa Mário em seu artigo A Fosca, publicado em junho de 1934 pela Revista Brasileira de Música. Há, ainda segundo Mário de Andrade, outro tema importante relacionado aos piratas: a escala dos corsários. É o primeiro tema que o coro canta quando surge no palco e que se ouve várias vezes durante toda a ópera. Essa escala ascendente transmite, musicalmente, a coragem, a determinação e a união dos piratas.

Já no primeiro ato da récita de estreia (07 de dezembro de 2016), com menos de meia hora de ópera, era possível prever que a atuação do Coro Lírico Municipal seria um dos destaques da noite. Com belos coros, Fosca exige bastante do coral: as entradas não são nada intuitivas e as linhas, repletas de notas curas e acentuadas. Quem escuta as gravações da peça realizadas em 1966 e 1973 no mesmo Theatro Municipal de São Paulo pode constatar que, ao lado de ótimos cantores, atua um coro inseguro e cujas entradas são incertas e marcadas por gritos do ponto. O resultado é um coro desencontrado em quase todas as suas participações. Já o nosso coro de 2016, mesmo cantando enquanto atuava, enquanto se movimentava, conseguiu vencer a maioria dos obstáculos. Embora nem sempre tenha ficado bem sincronizado com a orquestra, o coro se mostrou um todo coeso, consistente.  Bom resultado do trabalho sério dos membros do Coro Lírico e de Bruno Facio, seu competente maestro.

Ainda no quadro em que Fosca está suplicando a Gajolo que não a separe de Paolo, aparece outro tema identificado por Mário de Andrade: Fosca implorante. Ele o descreve como “lindíssima frase vocal, em que o temperamento bárbaro de Fosca, filha e mana de chefes corsários, se suaviza pelo mal do amor”. Frase lindíssima e um pequeno exemplo de como é dificílima a linha de Fosca. Quando ela canta “Ah, fratello, cedi al grido del mio straziato cor”, entre o fatello e o cedi há um salto em sétima, digamos, em forma de “V” (ou seja, descendente e depois ascendente) e, como se não bastasse, após a parte ascendente do salto há a indicação de pianíssimo. Em seguida, uma escala descendente até o Ré no grave. Nesse tema de apenas cinco compassos a soprano passeia por uma oitava e meia.

No papel de Fosca, alternaram-se Nadja Michael e Chiara Taigi.  A grande Nadja Michael, de voz enorme, poderosa, com notas muitíssimo bem colocadas e interpretação intensa, conseguiu transmitir através de sua voz a carga dramática de uma súplica sofrida, desesperada. Porém, sua forma de cantar em italiano soou um tanto estranha, mais straussiana ou wagneriana do que o esperado para uma ópera italiana. Sua técnica alemã e a especialização em papeis do repertório germânico – como a excelente Salomé com que presenteou o público paulistano em 2014 – sem dúvida comprometeram a construção da personagem italianíssima. Porém, nos entregou uma Fosca extremamente envolvente e, claro, bem cantada. No segundo elenco, Chiara Taigi, embora não tenha a intensidade da interpretação, o vozeirão nem a técnica de Nadja Michael – na verdade,  sua voz não tem o peso da voz de uma soprano dramática e apresenta alguma instabilidade nas passagens –, foi uma Fosca com canto mais fluente, elegante e natural. Enquanto a Fosca de Michael pareceu mais atormentada, a de Taigi foi uma sofredora mais introspectiva. Tivemos, portanto, duas interpretações absolutamente diferentes, quase opostas, da personagem título.

O drama de Fosca – rica e poderosa, porém fragilizada pelo ciúme; irmã do líder Grajolo, mas rejeitada por Paolo, seu amado, — chama a atenção de Cambro, escravo dos corsários da Ístria. Cambro é uma espécie de Iago. Tudo observa, tudo escuta. Astuto, ele vai tramando sua ascensão e manipulando os outros personagens, especialmente Fosca. Usa, aliás, a mesma arma de Iago: o ciúme. Em sua célebre e bela ária D’amore le ebbrezze, Cambro expõe seu plano: sem Paolo, a Fosca só restará entregar-se a ele. Fica claro que ele não está apaixonado por ela (como é comum aparecer em descuidadas sinopses) e o que espera dela não é a embriaguez do amor, mas tornar-se poderoso graças ao seu ouro. Através dela e eliminando Gajolo, quer passar de escravo a rei. É com esse objetivo que ele oferece a Fosca ajuda para vingar-se da rival e a induz a jurar-lhe que, em troca, será sua esposa. Tanto no primeiro quanto no segundo elenco, os excelentes barítonos Marco Vratogna e Leonardo Neiva fizeram de Cambro o grande solista da noite. Na estreia, Vratogna se destacou com sua ótima atuação e voz homogênea; no dia seguinte, Neiva reinou absoluto.

É bastante interessante o dueto entre Fosca e Paolo, quando ela declara seu amor ao prisioneiro, propõe fuga e depois anuncia a ele que seu pai havia pago o resgate. Vivem em mundos distintos e o amor impossível que Fosca nutre por ele o aterroriza. Na música, quando se torna evidente essa distância intransponível entre os dois, o dueto em forma de diálogo dá lugar a um contraponto em que cada um canta a sua linha sem se importar com o que o outro tem a dizer: enquanto Fosca sofre, suplica, propõe que fujam juntos, Paolo, com uma alegre canção no estilo da dos gondoleiros, canta a alegria de voltar para sua bela Veneza. No cenário, deixando Paolo suspenso em uma prisão em forma de bola, Stefano Poda salienta as barreiras e a distância que os separam.  Thiago Arancan e Nadja Michael tiveram uma interpretação dramaticamente impecável. Foi, aliás, o grande momento do tenor, que projetou sua voz com naturalidade, demonstrando que tem um belo timbre e bom volume. É uma pena que depois, em muitos momentos, Arancan tenha voltado a espremer e empurrar sua voz, cantando um pouco gritado, comprometendo o brilho e a dicção, como fez em Carmen, em 2014, quando interpretou Don José. É notório, porém, que nesses dois anos que separam as duas óperas o tenor evoluiu bastante. No segundo elenco, Sung Kyu Park foi um Paolo com bela voz, brilhante, mas fraseado extremamente instável e vibrato exagerado.

Nesse quadro é impossível não se lembrar do dueto entre Aida e Radamés, na ópera de Verdi, quando Aida propõe a Radamés que fujam juntos e, em seguida, começa a cantar as maravilhas de sua terra natal. Se não bastasse a coincidência de ser o último encontro antes da partida de Paolo num caso e de Radamés no outro, a proposta da fuga e o amor impossível, ainda há mais uma coincidência: na ópera de Verdi, Amonasro, pai Aida, está escondido ouvindo a conversa; na ópera de Carlos Gomes, quem se esconde é Cambro. Talvez a existência dessa e de tantas outras semelhanças com Aida não seja mera coincidência. A obra de Verdi havia estreado em 1871, dois anos antes da Fosca. E, como Mário de Andrade no artigo já citado, “não estou longe de imaginar que Carlos Gomes, de certo ouvinte da primeira representação milanesa da Aida, alimentasse o ideal de igualar ou mesmo superar a obra prima verdiana”. A escolha, para Fosca, do mesmo libretista de Aida, Antonio Ghislanzoni, é um indício disso.

Mário de Andrade reconhece que no libreto de Fosca há, como no de Aida, qualidades. Ressalta, porém, que alguns defeitos se acentuam. “Há principalmente, no primeiro quadro do segundo ato, toda uma cena entre o traidor Cambro, e os dois amantes Paolo e Delia, duma absoluta desnecessidade dramática. Realmente, todo esse primeiro quadro é desnecessário, não fosse o dueto de amor que o abre, e que Carlos Gomes conseguiu justificar, lhe ajuntando uma música admirável. Mas a própria invenção melódica do compositor, embora ele tivesse bastante habilidade em pintar situações galantes (habilidade mas não gênio) (…), não consegue evitar o vazio que causa esse quadro inútil”. Na produção paulistana, o dueto foi especialmente admirável com o elenco da estreia, tendo a soprano brasileira Lina Mendes no papel de Delia. Se já havia se projetado quando, pouco mais de um mês antes da Fosca, interpretou com a Osesp Les Nuits d’Été, de Hector Berlioz, a ópera de Carlos Gomes confirmou as qualidades da cantora. Também é interessante observar que, não se sabe se intencional ou acidentalmente, na desnecessária cena entre os amantes e o traidor Cambro a Orquestra Sinfônica Municipal, regida por Eduardo Strausser, tomou o protagonismo. Salientou-se, assim, enquanto Cambro aparecia disfarçado de vendedor oriental, um tema que bem podia ser um ballet russo. Na música, ainda, logo na introdução desse segundo ato, fica evidente a ambientação em Veneza, o estilo de barcarola.

Os corsários, e com eles Fosca e Cambro, já estão em Veneza se preparando para o ataque ao casamento coletivo. Após Cambro atiçar seu ciúme e sua sede de vingança, Fosca canta sua bela ária Quale orribile peccato, onde, como faria Tosca quase três décadas depois, pergunta qual o seu pecado, por que estava sofrendo tanto. Para Mário de Andrade, no final da ária “Carlos Gomes antecipa o caráter da melódica de Puccini, principalmente ou exclusivamente naquele ardente lirismo, naquela plasticidade apaixonada que Puccini conseguiu na Mme. Butterfly”. Chiara Taigi interpretou com muita beleza sua principal ária. Nadja Michael, porém, o fez da forma magistral como só é capaz de fazer quem está vivendo sinceramente cada palavra, cada nota e, ao mesmo tempo, tem total domínio sobre sua linha e sua voz.

Para Mário de Andrade, a ambientação de Fosca é excelente. “Música sobre fundo de água, como deveria ser um drama entre corsários e vênetos. Os movimentos barcarolados, os compassos compostos se multiplicam, com naturalidade, sem que gente perceba no autor essa graça ruim de enfiar barcarolas pelos ouvidos da gente”. O mesmo se pode dizer sobre o cenário de Stefano Poda, um diretor mais preocupado em refletir sobre a obra do que simplesmente a narrar. Tudo é simetria, reflexo, “movimento barcarolado”. No alto, uma maquete representando Veneza que, iluminada, se inclina para o público quando a ação se passa na cidade. Essa maquete, porém, tem seu “outro lado”: a cidade também está representada de ponta cabeça, na parte de baixo, como se, embaixo de Veneza, submersa na água, houvesse outra cidade. A parte de cima do palco é iluminada e a de baixo, escura, como se estivesse dentro da água, no mundo dos piratas. Nos fundos e nas laterais, o cenário é reto, simétrico, e repleto da frase do Leão de São Marcos, dando um movimento repetitivo, como é o reflexo produzido pela água do mar. O piso, escuro, reflete os atores de forma imperfeita, ondulada, como se fosse água. Sobre esse piso, passarelas de madeira (com a frase do Leão de São Marcos), como as usadas quando há alagamento em Veneza, deslocam-se constantemente, provocando alterações no cenário.

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O cenário de Fosca.

Quando, abaixada, a protagonista canta Quale orribile peccato, é possível ver, através do piso espelhado, sua expressão. Ela como que se olha no espelho, se confronta com seu reflexo e tenta entender por que a revelação do amor trouxe o céu para Paolo e Delia e, para ela, o inferno. Se o texto sugere uma oposição quase maniqueísta entre céu e inferno, amor e ódio, bem e mal, Stefano Poda, que vive no país da arte renascentista e barroca, foi muito além. Sua produção — na qual, além da direção cênica assina os cenários, a iluminação, a coreografia… — é uma aplicação viva da técnica do chiaroscuro barroco. Em muitos momentos faz lembrar Caravaggio ou o vêneto Tintoretto, inclusive na escolha das cores: branco (cor de Veneza, da Piazza San Marco), preto, vermelho, marrom e cor da pele. Corpos seminus, tão frequentes nas pinturas e esculturas renascentistas e barrocas, tão presentes em Michelangelo, movem-se com movimentos suaves, banhando-se na água da música e do cenário. Como na arte barroca, muitas pessoas no palco se confundem, se entrelaçam. Eles dialogam diretamente com os sentimentos de Fosca, com sua paixão, sua obsessão.

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Fosca: Quale orribile peccato espiar quaggiù degg’io?

Após o rapto das noivas e a captura de Delia e Paolo, de volta à Ìstria, Delia canta sua aria que é uma verdadeira ponte entre o Addio del Passato, de La Traviata, e a ária de Micaela, de Carmen.  Quem, como eu, estava em andares superiores, se deleitou com a bela interpretação de Lina Mendes. Porém, seu posicionamento no fundo do palco e no alto, presa, sendo tragada de sua iluminada Veneza para o mundo sombrio dos piratas, prejudicou a audição daqueles que estavam na parte frontal da plateia.

Foi sublime o dueto entre Fosca e Delia, logo a seguir, sobretudo quando Lina Mendes e Nadja Michael o protagonizaram. Em um nítido eco do dueto entre Aida e Amneris, Fosca adverte Delia: “Sou a sua rival… Tu, a minha escrava!”. Nesse delicado momento, Delia comove Fosca, a convence a perdoar os amantes. Observadora colega de ópera me apontou um sutil detalhe: a constante troca de sapatos da protagonista. Ela estava curiosa quanto ao significado disso e, claro, a curiosidade me contagiou. Nas récitas seguinte a que assisti fiquei atenta às trocas. No primeiro ato, Fosca, mulher apaixonada, iludida, está de salto alto; quando chega a Veneza, guerreira, está de botas; no dueto com Delia, fragilizada e vulnerável à rival que a comove, Fosca está descalça. Genial.

Após ser convencida por Delia a perdoar o ‘delito’ do amor, Fosca se encontra com Cambro. O autêntico Iago, ameaçado com o fato de que a libertação do casal resultaria na salvação e retorno de Gajolo, preso em Veneza, faz com que a ira e o ciúme de Fosca ressurjam de forma violenta. Afinal, o retorno de Gajolo significaria o fim dos planos de Cambro de se tornar o líder dos corsários. Aqui, a Fosca guerreira impiedosa, que se deixa dominar pelo grito de vingança, está de botas.

É digna de destaque a bela participação do violista Alexandre de León, no palco, solando o prelúdio da última cena. Acima dele, ganhava destaque uma pessoa segurando um violino (ou viola mesmo), evocando, talvez, o amor de Fosca. Uma figura mística? Um anjo músico, imagem tão cara aos artistas italianos do barroco? Esse introspectivo momento de reflexão instrumental, de parada para respirar e processar os sentimentos, antecipa em duas décadas o prelúdio do último ato de Manon Lescaut, de Puccini, com seu belo solo de violoncelo e a Meditação de Thaïs, de Massenet, protagonizada pelo violino.

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Na parte da frente, Paolo (Thiago Arancan) e Fosca. No fundo, figurante com o violino.

Na última cena Fosca vive intensamente seu conflito interior: ama desesperadamente Paolo, daria cem vidas para salvá-lo mas, ao mesmo tempo, quer a morte de Paulo e Delia. O conflito só pode ser resolvido com a morte do próprio amor, a morte de Fosca. Nessas alturas, Fosca já está descalça, absolutamente vulnerável: seus seios já estão à mostra. Ou melhor: estariam, não fosse uma tinta preta derramada sobre ela quando está morrendo. Com o líquido preto sobre ela, mistura-se à ‘água’ do piso, é absorvida pelo mundo da água onde só há o reflexo. Com a impactante atuação de Nadja Michael, foi um grande final.

Chiara Taigi não ficou descalça (ou, se ficou, foi pouco tempo) e não se despiu no final. Tal escolha, porém, em vez de atrapalhar a concepção cênica foi coerente com a Fosca mais contida que interpretou e cantou.

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Cena final. À frente, descalça, com seus sapatos soltos, perto de seus pés, e um ator, Nadja Michael como Fosca. No fundo, Cambro (Marco Vratogna) morto, deitado, Delia (Lina Mendes) e Paolo (Thiago Arancan).
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A Salome de Caravaggio: manto vermelho, cosrpos à mostra e chiaroscuro.

Há, na montagem paulistana de Fosca, muita beleza, muita arte. Porém, é preciso que se diga que, em algumas partes, a produção foi demasiado escura. Além disso, uma impertinente fumaça, recurso bastante na moda e pavor de cantores alérgicos, atrapalhou a visão. Ainda, se a não utilização da parte da frente do palco proporcionou um bonito reflexo no chão, também atrapalhou a acústica, sobretudo para quem estava na plateia. Tratando-se de uma ópera pouco conhecida, raras vezes executada e com libreto um tanto confuso em certos momentos, esses pontos prejudicaram o aproveitamento de parte do público.

Ao longo do texto citamos alguns temas que Mário de Andrade identificou em seu citado texto sobre a obra. Para Mário, Fosca utiliza o conceito wagneriano do tema condutor. Embora não se saiba se Carlos Gomes tenha, em 1873, ouvido alguma ópera de Wagner, supõe-se que ele tenha, ao menos, ouvido falar no assunto e no uso de tais temas. O uso de temas não era algo novo e a forma como Carlos Gomes o faz nada tem a ver com o leitmotiv wagneriano. Porém, ele, de fato, faz uso extremo de motivos e os emprega para sentimentos que conduzem a trama. Se por um lado não se trata de uma direta influência de Wagner em sua música, por outro Carlos Gomes faz um uso mais sofisticado dos temas do que até então se fazia.

Sua relação entre as linhas dos solistas e a orquestra também está afrente da ópera de seu tempo. Em muitos casos, a melodia da orquestra se entrelaça com a de solistas, a preenchendo, completando ou fazendo contraponto. Além disso, a variada música de Carlos Gomes pinta cada personagem de acordo com seu caráter. É possivel, por exemplo, no dueto entre Paolo e Delis, identificar Fosca musicalmente quando ela é citada. Também na forma Carlos Gomes foi um inovador: Verdi viria, com Otello, a abandonar a forma de ópera dividida em árias bem definidas, bem separadas, com pausa para aplausos após cada uma. Em Fosca a música é quase contínua, sem interrupções — outra tendência wagneriana que talvez tenha chegado ao conhecimento do compositor.

A influência do gosto musical brasileiro da época, das modinhas e danças de salão, também pode ser ouvida em Fosca. Há vários exemplos, ao longo da peça, em que de repente  orquestra começa a tocar uma modinha ou, como no dueto entre Fosca e Delia, uma valsa, como se elas estivessem bailando.

A atuação da Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência de Eduardo Strausser, cumpriu muito bem o seu papel, destacando essa variedade musical da partitura. Sobretudo com o segundo elenco, cujas vozes femininas não tinham a mesma potência de seus pares do primeiro elenco, a orquestra soou, em alguns momentos, alta demais. Porém, ao longo das récitas maestro e orquestra acharam uma boa medida. Houve desencontros, o que não é de se estranhar com uma partitura cheia de notas curtas. Luiz-Ottavio Faria, embora de modo geral tenha desempenhado bem o seu papel de Gajolo, apresentou mais dificuldade de articulação, ficando para trás em algumas ocasiões como, por exemplo, no quarto ato, quando está diante do Doge.

É uma pena que Fosca não tenha agradado o público italiano como O Guarani. Não se pode saber o rumo que o Carlos Gomes teria adotado caso suas inovações tivessem feito sucesso. É, porém, perfeitamente compreensível que ele tenha dado meia volta e mudado o rumo, aplicando sua técnica de composição, agora mais madura, à fórmula aceita. Mas também é compreensível que nunca tenha abandonado Fosca,  que nunca tenha desistido dela e, até 1890, tenha feito revisões naquela que considerava uma obra para “os entendidos”.

Com Fosca, o Theatro Municipal de São Paulo encerrou uma temporada pequena, acidentada, com cortes de verbas, escândalo ode corrupção, demissão de diretor artístico… Com tudo isso, a ideia original de lançar Fosca em DVD foi abanada. A ópera de Carlos Gomes, ao que tudo indica, ainda terá que esperar alguns anos para ter uma versão comercial em boa qualidade de áudio e vídeo. Porém, essa produção demonstrou que, mesmo aos trancos e barrancos, foi possível concluir de forma digna a temporada. Esperamos que em 2017 o Theatro Municipal tome um rumo que mantenha e aprofunde a qualidade de seus corpos estáveis e suas produções e que sane os problemas administrativos que tanto empecilho têm trazido às realizações artísticas.