“Respiro apenas…

Sou apenas uma humilde serva
do gênio criador.
Ele me dá as palavras
e eu as faço chegar ao coração.
Eu sou o acento do verso.
Um eco do drama humano…
Um frágil instrumento
Vassalo da mão.
Triste; alegre; terrível.
Me chamo: Fidelidade!
Minha voz é um sopro
Que morre a cada manhã”

É com a ária acima que o compositor italiano Francesco Cilèa (1866-1950) e o libretista Arturo Colautti (1851-1914) apresentam, em sua ópera, Adriana Lecouvreur, personagem que traz ao mundo da música Adrienne Lecouverur (1692-1730), célebre atriz da Comédie Française. A trama, no estilo da popular “Les Liaisons Dangereuses” (Choderlos de Laclos, 1782), que pode parecer confusa à primeira vista, se baseia, de modo bastante fiel, na peça Adrienne Lecouvreur (1849) de Ernest Legouvé e Eugène Scribe. Não é de se estranhar a pequena necessidade de ajustes e cortes na peça: ela tem como um dos autores o dramaturgo e libretista francês Eugène Scribe, que escreveu os libretos de Le Comte Ory (Rossini), Les Vêpres siciliennes (Verdi),  Robert le Diable, Les Hungenots, Le Prophète e L’Africaine (Meyebeer).

Adrienne Lecouvreur - Musée de Chalons.jpg
Adrienne Lecouvreur

Adriana Lecouvreur (a ópera) estreou com sucesso no Teatro Lírico de Milão em 6 de novembro de 1902, tendo no elenco Angelica Pandonfini (Adriana), Enrico Caruso (Maurizio) e Giuseppe de Luca (Michonnet). CarusoPandonfini podem ser ouvidos, pelo You Tube, cantando trechos da ópera, com acompanhamento de piano, em gravações de 1903 e 1902, respectivamente (é só clicar em seus nomes, acima, para assistir). Caruso, vale observar, é acompanhado no piano pelo próprio Cilèa. Dentre as célebres intérpretes de Adriana, está a soprano italiana Magda Olivero (1910-2014), a preferida de Cilèa. Em 1950, pouco antes de morrer, o compositor pediu a Olivero, casada e afastada da carreira por uma década, que voltasse e levasse de novo sua ópera aos palcos. Ela o atendeu e, em 1951, retomou sua carreira por mais trinta anos. Cilèa não viveu para ver, mas seu desejo foi realizado. A ária acima, com ela, é uma gravação de 1939 — portanto, feita durante a vida de Cilèa. Interpretação simplesmente magnífica — segura, limpa, precisa, natural –, nos dá uma ideia do que o compositor esperava de sua Adriana e do motivo de sua predileção por Olivero.

Além de Adriana Lecouvreur, Cilèa escreveu outras quatro óperas, dentre elas L’Arlesiana, mais conhecida pela ária Lamento di Frederico, mas Adriana foi a única bem recebida. Embora tenha composto na época do verismo, não nos parece fazer sentido classificar Cilèa como um compositor verista. Apesar de ser uma ópera extremamente passional, com traições e envenenamento, Adriana Lecouvreur não trata de gente comum, do povo. Musicalmente, é possível notar mais a influência do romantismo, de Richard Wagner e de Jules Massenet, do que dos compositores veristas. Lauro Machado coelho, porém, nos lembra que há marcas do verismo no canto, na forma de cantar, sobretudo do tenor. Em Adriana Lecouvreur, além de utilizar a música contínua, sem aquela pausa bem italiana após as árias, Cilèa faz uso de temas que se identificam com personagens e situações. Embora não tão elaborados quanto o leitmotif wagneriano, essa prática demonstra a influência exercida pelo compositor alemão. Os temas, em muitos casos, já aparecem antes mesmo de serem desenvolvidos nas árias que tornam explícitas as associações com personagens ou situações. Não se tratam, portanto, de meros ecos ou memórias.

cilea 1900
Francesco Cilèa em torno de 1900.

O primeiro dos cinco atos da peça Adrienne Lecouvreur foi suprimido na ópera e as informações mais importantes nele contidas, distribuídas ao longo dos outros atos. A peça começa com um diálogo entre a Princesa de Bouillon e o Abade de Chazeuil. De manhã, o Abade visita a Princesa para deixá-la a par das últimas fofocas. Ele conta que naquela noite Adriana Lecouvreur e a Duclos, as duas célebres artistas da Comédie Française na época, estariam juntas em Bajazet de Racine. Conta, ainda, que a Duclos é amante do Príncipe. A Princesa, por sua vez, revela conhecer a infidelidade do marido e aproveitar-se dela para conseguir manipulá-lo e extrair dele o que desejasse. Há até um acordo  entre ela e a Duclos, sua protegida. Quando entram em cena o Príncipe de Bouillon e Athénaïs, a Duquesa de Aumont, amiga íntima da Princesa, ficamos sabendo do interesse do Príncipe por química e que havia recebido, para analisar, uma caixa contendo um veneno que, quando colocado em, por exemplo, uma flor, seria capaz de levar à morte alguém que o aspirasse. Na ópera, essa informação aparece no início do terceiro ato, em uma ária cantada pelo Príncipe que é geralmente omitida.

Voltando ao enredo, a Duquesa informa que Maurice de Saxe (ou Maurício, o Conde da Saxônia), oficial do exército de Louis XV, está de volta a Paris. Entra Maurício, que comenta sobre suas batalhas e disputas políticas. Convidam-no para ver Lecouvreur e Duclos à noite e Athénaïs comenta sobre a revolução que Adriane estava causando na Comédie Française ao declamar de forma simples e natural: “C’est admirable! Elle a emané toute une révolution dans la tragédie: elle y est simple et naturelle: elle parle.” A Princesa e o Abade, por sua vez, defendem que a tragédia deve ser “cantada”, como faz a Duclos, seguindo a tradução, já que os poetas dizem “Je chante…” Entendemos esse “cantar” como um estilo mais artificial, quase melodioso de declamar, e não um canto propriamente dito.

Quando os outros se retiram a Princesa fica a sós com Maurício. Ela questiona as flores que ele trazia presas ao casaco. Ele diz que as comprou no caminho e quando a Princesa pergunta se eram para ela, as oferece. Na ópera, vemos, no primeiro ato, Adriana oferecendo as flores e é no segundo que ele as dá à Princesa. Essas flores percorrerão toda a ópera.

A Princesa combina um encontro com Maurice na casa que o Príncipe havia comprado para a Duclos e diz que a Duclos lhe enviará um bilhete confirmando data e horário. Desconfiada de que o Conde tem outra amante, encarrega o Abade de descobrir a identidade da rival. O Abade tenta obter a informação com o Príncipe, que, por sua vez, diz que vai tentar obtê-la junto à Duclos.

Sala da Comédie Française na Rue des Fossés-Saint-Germain-des-Prés, onde funcionou de 1689 a 1770, época de Adrienne Lecouvreur.

A ópera começa no segundo ato da peça. Foyer da Comédie FrançaiseMichonnet, o régisseur géneral, atende a todos que se preparam para entrar em cena e não cessam  de chamá-lo. O Príncipe é avisado de que a Duclos, já pronta, escrevia uma carta que não era para ele e vai tentar descobrir do que se trata. Adriana estuda seu papel, a fim de representá-lo de forma verdadeira. Declara ser Michonnet seu grande amigo e mestre. Na ópera, Adriana canta a célebre ária, “Io son l’umile ancella“, transcrita acima, onde é introduzida a filosofia da atriz, um instrumento da poesia, e a naturalidade por ela introduzida:”respiro apenas…” Cilèa é cruel com a soprano que, logo que entra em cena, tem um texto falado, esboça algumas notas e já se depara com essa ária difícil tecnicamente. 

Os atores saem para entrar em cena, ficam Adriana e Michonnet. Michonnet pensa em declarar seu amor por Adriana mas, ao introduzir o assunto, descobre que ela está apaixonada por outro. Na peça ela conta que, um dia na saída de um baile na Opéra, quatro jovens a cercaram e impediram que chegasse ao seu carro. Surgiu um oficial que ela não conhecia, a salvou e os desafiou. Depois seu herói, que se identificou como um pobre oficial subalterno ao Conde da Saxônia,  foi visitá-la e aí começou o romance. Eufórica, diz que nesta noite ele vai assistir à estreia de Bajazet. Na orquestra, a melodia melancólica associada a Michonnet abre espaço para a melodia que o Maurício cantará para Adriana. Conforme comentamos acima, o tema aparece antes mesmo do personagem.

Chega Maurício, à procura de Adriana. Ela não sabe, mas nós ficamos sabendo que seu amado é, na verdade, o próprio Conde. O Conde canta para ela sua bela ária La Dulcissima Effigie em que diz para Adriana algo que não foi ideia da peça francesa: em  seu rosto sorridente revê o de sua mãe, com ela sente-se em sua terra natal e ela é tão bela quanto sua bandeira. Adriana elogia tão irresistível galanteio e Maurício justifica: Sì! Amor mi fa poeta! (O amor me faz poeta). Ele e Adriana combinam de se encontrar após o espetáculo.

La dolcissima effigie sorridente
in te rivedo della madre cara;
nel tuo cor della mia patria,
dolce, preclara, l’aura ribevo,
che m’aprì la mente…

Quando Adriana está no palco, Michonnet, dos bastidores, a observa, sobretudo na hora de seu monólogo: Ecco il monologo. Michonnet canta em um verdadeiro dueto com o violino que, acompanhado pela orquestra, toca o tema de Adriana. Mas Michonnet se lembra que Adriana está interpretando o monólogo para outro, e não para ele. Através dos temas tocados pela orquestra podemos sentir a presença de Maurício e da Princesa na plateia.

O Príncipe intercepta a carta que a Duclos enviara ao Conde e supõe que ela se encontraria com seu novo amante. Resolve promover um jantar na casa da Duclos para os atores da Comédie a fim de surpreendê-la no crime. Porém, como sabemos graças à peça, ela era mera intermediária: o encontro de Maurício seria com a Princesa.

O segundo ato da ópera é aberto com o tema da Princesa — aquele mesmo que já havia soado no primeiro ato durante o monólogo e quando Maurício fica sabendo que terá de encontrar com ela à noite e desmarcar com Adriana. A Princesa canta sua forte ária Acerba voluttà…O vagabonda stella, em que chama a sua espera por Maurício e o seu amor por ele de “Cruel volúpia, doce tortura, lentíssima agonia.”

Maurício chega e aqui tem lugar a cena do primeiro ato da peça, em que ele lhe dá as flores de Adriana. Após ser informado de que corria perigo, Maurício manifestar o desejo de fugir e a Princesa não aprova a ideia, uma vez que ela o perderia. Em resposta à suspeita de que ele teria outra, de que a estaria traindo, Maurício canta sua bela ária L’anima ho stanca, onde pede a graça da Princesa e diz que se o amor acabar em seu coração restará uma terna amizade.

Logo são surpreendidos pela chegada do Abade e do Príncipe. A Princesa se esconde. Também chegam Michonnet e Adriana, que finalmente descobre a verdadeira identidade de seu amado. Após um dueto de amor, Maurício jura para Adriana que, ao contrário do que todos pensam, ele estava lá por razões políticas e a mulher que se escondia não era a Duclos. A instrui, também, sobre a necessidade de salvar a desconhecida sem que uma descobrisse a identidade da outra. Como ele jurou por sua honra, Adriana ajuda a Princesa a fugir. Mais um confronto típico entre soprano e mezzo pelo amor de um tenor. Como em Aida, de Verdi, a mezzo é poderosa e a soprano, não. Porém aqui, Adriana não se intimida.

A Princesa não viu Adriana, mas ouviu sua voz e quer saber, a todo custo, quem é a rival. Passa algum tempo. Na peça,  Adriana empenha o colar de diamantes que havia ganho da Rainha para salvar Maurício, preso durante uma batalha. Ela é convidada para um jantar na casa do Príncipe. A Princesa reconhece sua voz, a identifica como a amante de Maurício. Adriana também identifica a Princesa. Pedem que ela declame o monólogo de Fedra, de Racine. Adriana declama a cena do retorno de Teseu, quando Fedra — que ama Hipólito, filho bastardo de Teseu, seu marido que julgava morto — fica sabendo que Teseu não estava morto e, pior ainda, estava voltando. Fedra, que já havia se declarado a Hipólito, sabia que seria denunciada e punida como infiel. Apontando para a Princesa, Adriana termina o monólogo: “…le audacissime impure, cui gioia é tradir,  una fronte di gelo, che mai, mai debba arrossir!” Adriana se sente vingada e a Princesa, insultada e jura vingança. Na orquestra o tema já antecipa a morte de Adriana.
No quarto ato se passa na casa de Adriana. Na peça, ainda é a noite da recepção, Adriana havia acabado de chegar da casa do Príncipe. Na ópera, é aniversário de Adriana. Michonnet leva para ela o colar de diamantes, que havia resgatado com o dinheiro de uma herança. Ela recebe, supostamente da parte de Maurício, uma caixa contendo as flores que ela lhe havia oferecido no primeiro ato. Enquanto ela canta a desafiadora ária Poveri Fiori, onde lamenta as pobres flores, que já foram frescas mas murcharam, como as falsas promessas de amor de um coração ingrato.
Chega Maurício, que havia recebido um bilhete de Michonnet, e a pede em casamento. Após um dueto de amor, percebe que ela está morrendo. Como ocorre em La Traviata, tendo recuperado seu amado ela não quer mais morrer. Porém, o veneno contido nas flores enviadas, na verdade, pela rival, já fazia efeito. Em um delírio, morrendo, Adriana declara ser Melpômene, a Musa da Tragédia, e canta:

“Eis a Luz,
que me seduz,
que me sublima,
primeira e última
luz do amor.
Liberta da dor,
eu vôo, vôo,
como uma branca
pomba cansada,
à sua claridade.”

Além de Maurice de Saxe, Adrienne Lecouvreur teve outros amantes, inclusive Voltaire. Quando Adrienne morreu, em 20 de maio de 1730, o clero não permitiu que seu corpo fosse devidamente enterrado, no cemitério, já que ela era uma atriz e, consequentemente, excomungada. Indignado, Voltaire escreveu seu poema Sur la Mort de Mademoiselle Lecouvreur, reclamando do tratamento dado pelos franceses a sua grande atriz:

Que vois-je ? Quel objet ! Quoi ! Ces lèvres charmantes,
Quoi ! Ces yeux d’où partaient ces flammes éloquentes,
Eprouvent du trépas les livides horreurs !
Muses, Grâces, Amours, dont elle fut l’image,
O mes dieux et les siens, secourez votre ouvrage !
Que vois-je ? C’en est fait, je t’embrasse, et tu meurs !
Tu meurs ! On sait déjà cette affreuse nouvelle ;
Tous les cœurs sont émus de ma douleur mortelle.
J’entends de tous côtés les Beaux-Arts éperdus
S’écrier en pleurant : « Melpomène n’est plus ! »
Que direz-vous, race future,
Lorsque vous apprendrez la flétrissure injure
Qu’à ces Arts désolés font des hommes cruels ?
Ils privent de la sépulture
Celle qui dans la Grèce aurait eu des autels.
Quand elle était au monde, ils soupiraient pour elle ;
Je les ai vus soumis, autour d’elle empressés :
Sitôt qu’elle n’est plus, elle est donc criminelle ?
Elle a charmé le monde, et vous l’en punissez !
Non, ces bords désormais ne seront plus profanes ;
Ils contiennent ta cendre ; et ce triste tombeau,
Honoré par nos chants, consacré par tes mânes,
Est pour nous un temple nouveau !
Voilà mon Saint-Denis ; oui ; c’est là que j’adore
Tes talents, ton esprit, tes grâces, tes appas :
Je les aimai vivants, je les encense encore
Malgré les horreurs du trépas,
Malgré l’erreur et les ingrats,
Que seuls de ce tombeau l’opprobre déshonore.
Ah ! Verrai-je toujours ma faible nation,
Incertaine en ses vœux, flétrir ce qu’elle admire,
Nos mœurs avec nos lois toujours se contredire,
Et le Français volage endormi sous l’empire
De la superstition ?
Quoi ! N’est-ce donc qu’en Angleterre
Que les mortels osent penser ?
O rivale d’Athènes, O Londres ! Heureuse terre !
Ainsi que les tyrans vous avez su chasser
Les préjugés honteux qui vous livraient la guerre.
C’est là qu’on sait tout dire, et tout récompenser ;
Nul art n’est méprisé, tout succès à sa gloire,
Le vainqueur (1) de Tallard, le fils de la victoire,
Le sublime Dryden et le sage Addison,
Et la charmante Ophils (2), et l’immortel Newton,
Ont part au temple de mémoire :
Et Lecouvreur à Londres aurait eu des tombeaux
Parmi les beaux esprits, les rois, et les héros.
Quiconque a des talents à Londres est un grand homme.
L’abondance et la liberté
Ont, après deux mille ans, chez vous ressuscité
L’esprit de la Grèce et de Rome (3).
Des lauriers d’Apollon dans nos stériles champs
La feuille négligée est-elle donc flétrie ?
Dieu ! Pourquoi mon pays n’est-il plus la patrie
Et de la gloire et des talents ?