Artigo publicado pelo site Movimento.com em 01/04/2021
“Trata-se de um muito peculiar entrelaçamento de épocas, destinadas, aliás, a se unirem com uma terceira, que é o período em que o leitor um dia talvez aproveite para tomar conhecimento do que comunico. Assim sendo, ele se defrontará com um triplo registro de tempos: o seu próprio, o do cronista e o histórico” (Thomas Mann. “Doutor Fausto”).
São estes os tempos de Der Rosenkavalier (O Cavalheiro da Rosa, 1911): o barroco da Viena de meados do século XVIII, início do reinado da Imperatriz Maria Teresa; a Viena de fin-de-siècle do compositor Richard Strauss (1864-1949) e do libretista Hugo von Hofmannsthal (1874-1929), às vésperas da I Guerra Mundial; o nosso tempo. E é, como um vetor invisível, o próprio tempo – que corre incessantemente, autor de renovações, transformações e da finitude – que liga esses três tempos. Wie du warst! Wie du bist! – “Como você era! Como você é!”, ouve-se logo na primeira linha cantada da ópera.
Talvez em nenhuma produção de Der Rosenkavalier a assinatura do nosso tempo esteja tão presente quanto na nova produção da Bayerische Staatsoper, de Munique, que estreou no último domingo, 21 de março. Em virtude das restrições para tentar frear a pandemia que assola o mundo, a apresentação ocorreu sem público e com a ótima orquestra contando com pouco mais de 30 músicos. Para tanto, foi utilizada a redução, inspirada em Ariadne auf Naxos, feita pelo maestro alemão Eberhard Kloke. A récita, transmitida pela internet, marcou a estreia do maestro Vladimir Jarowski como novo diretor artístico da casa.
Em entrevista a Catherine Kustanczy, recentemente publicada no site The Opera Queen (https://www.theoperaqueen.com/2021/03/23/reductions-jurowski), Jarowski compara a reorquestração à tradução de um poema. Também traça um paralelo entre o papel de Kloke e o dos modernos diretores cênicos “que revisitam as antigas peças e às vezes as desconstroem, mas há sempre uma ideia, há sempre boas razões. Você pode discordar das soluções e ideias, mas elas são feitas sempre com uma proposta artística”.
Após a ressalva de que, uma vez vencida a pandemia, deseja voltar à forma original de Der Rosenkavalier, Jarowski observa que a versão reduzida pode trazer descobertas, sobretudo no que diz respeito à teatralidade do libreto, que serão úteis no futuro, quando for possível voltar a fazer a orquestração original. “Na realidade”, completa ele, “a principal diferença entre a versão reduzida e a versão completa é que na versão completa, por mais transparente que seja a execução, você ainda ouve primeiro a orquestra e depois as vozes; com a versão reduzida, ela pode ser feita como uma peça de teatro, com música de fundo. E eu estou certo de que Hofmannsthal ficaria radiante, porque ele pensava na peça como sua composição, com música de Strauss (…)”. É evidente que esse contraste se torna mais marcante ao vivo do que em vídeo, onde os microfones podem ser ajustados de acordo com a sonoridade que se pretende obter.
A direção cênica da nova produção bávara, que substitui a do célebre Otto Schenk após décadas em cartaz, foi assinada por Barrie Kosky, que, segundo informou Jurowki na entrevista acima citada, também precisou fazer alterações em sua concepção original. De qualquer modo, o que nos chegou via streaming foi uma produção inteligente, minuciosamente dirigida e com forte teatralidade. Não se trata de uma produção de época, mas não se pode acusar Kosky de ter esvaziado a trama de sentido ou de fantasia. Ao contrário, esses aspectos foram acentuados.
Em carta de 1908 a Strauss, Hofmannsthal observou que estava escrevendo uma “comédia psicológica em prosa”. Foi exatamente o que a ópera de Munique colocou no palco. O tempo inclemente perpassa, em pessoa, a ópera inteira. A primeira imagem que se vê é a de um grande relógio cujos ponteiros giram freneticamente, cada um em um sentido, quase que zombando de nós. E toda a trama é assistida, e em alguns momentos até conduzida, pela figura mitológica do velho alado Pai Tempo (que entra em cena ao som da frase “cada coisa a seu tempo”). Discreto, franzino, curvado, mudo, os demais personagens quase não o notam. Sua passagem, no entanto, é sentida – e como!
As primeiras notas que nos chegam aos ouvidos, vindas das trompas, entoam um tema (o tema do jovem Octavian) que dá início à agitação frenética de uma noite de amor que se espalha por toda a orquestra. Em seguida, a calmaria, o torpor – que começa com outro tema (o da Marechala). Amanhece. Deparamo-nos com o diálogo quase sem sentido de um casal, com frases musicalmente no estilo wagneriano. Os protagonistas da cena são uma mulher madura de 32 anos, a Princesa Marie Thérèse von Werdenberg, conhecida como a Marechala por ser a esposa do marechal von Werdenberg – que, aliás, estava distante, caçando –, e seu jovem e inexperiente amante, o Conde Octavian Rofrano, de 17 anos.

Na produção de Munique, é do relógio que eles saem, de outro tempo. A Marechala aparece no exato momento em que a orquestra toca o seu tranquilo tema. Ao abrirem-se as cortinas, vemos uma cena que remete àqueles filmes de terror ambientados em antigos castelos, com as paredes em tons de cinza e alguns corvos passeando. O corvo, aquele mesmo que, através de Edgar Allan Poe, profetizou: Nevermore! Marie Thérèse e Octavian não sabiam, mas aquela havia sido a última noite de amor dos dois.
Como Tristão e Isolda na ópera de Wagner, Octavian lamenta a chegada do dia: “Não quero o dia!”, reclama o jovem, pois agora todos terão a Marechala, e ele precisará encarar a realidade. O desejo dele é que se façam novamente as trevas. Aqui, diferentemente da ópera de Wagner, o desejo das trevas vem de um jovem impulsivo, quase infantil, e com os hormônios à flor da pele – como fica claro na música de Strauss.
É uma provocação explícita de Hofmannsthal, fruto de seu “antiwagnerianismo”. Em Der Rosenkavalier, segundo o próprio libretista em trecho bastante duro citado por Burton D. Fisher no Opera Journeys sobre Der Rosenkavalier, ele buscava “se distanciar da intolerável gritaria erótica de Wagner – de duração e grau sem limites: um affair repulsivo, bárbaro, quase bestial, dos berros esganiçados de duas criaturas no cio”.
Mas vem a luz, e o quarto da Marechala é tomado por todos os que com ela tivessem algum assunto a tratar. Prática comum no século XVIII, essas entrevistas matinais mesmo antes de a nobre dama se levantar, ou enquanto ela fazia seus preparativos, nos soam como intolerável invasão de privacidade. Mais uma vez o tempo: ele passa, os costumes mudam.
A primeira visita que entra no quarto é o Barão Ochs auf Lerchenau, primo da Marechala. Com problemas financeiros, o Barão acertou com o burguês Faninal, um nouveau-riche interessado em enobrecer a família, um casamento com sua jovem filha Sophie.

O Barão Ochs, cujo nome significa ‘boi’, é uma espécie de personagem buffo inspirado em Falstaff, de Verdi (que Strauss admirava), em Molière, em Beaumarchais e com um toque mozartiano de Le Nozze di Figaro. Embora se trate de um nobre rude, do campo, e que, no segundo ato, se torne vítima dos perigos que Viena oferece, é para ele que Strauss reserva a linha mais vienense de sua partitura, uma bela valsa baseada em um tema de Dynamiden, que Josef Strauss escreveu em 1865 (confira aqui).
Mais que isso, Ochs guarda certo espírito vienense do fim do século XIX, conforme descreve Max Graf (1873-1958) em seu livro Legend of a Musical City: the story of Vienna: “O vienense se considerava indestrutível mesmo em tempos difíceis. Ele nasceu otimista. Essa qualidade, juntamente com sua sensibilidade e sua apreciação da beleza da natureza, fez dele um músico. Sua atitude despreocupada, descuidada em relação à vida, ele expressa cantando, brincando e dançando, bebendo vinho nas tabernas, nos festivais nas verdes vilas, escalando montanhas”. É bêbado e cantando sua valsa que, ferido, o barão encerra o segundo ato. Papel central, sobretudo para o aspecto cômico da trama, antes da estreia era ele que dava nome à ópera: Ochs auf Lerchenau.
Na produção bávara, o ótimo baixo alemão Christof Fischesser dá vida, com precisão e articulação ágil, a um Ochs que é o típico egocêntrico e que, com seu vozeirão, faz questão de dominar a cena. Dos personagens principais, é ele quem sofre maior atualização nas mãos de Kosky: o buffo caricato de tempos distantes dá lugar ao falastrão arrogante, engravatado e grosseiro, machista, que vive em uma realidade paralela e fala alto sem parar. Com isso, nada se perde – ao contrário, nos damos conta de que a sociedade do nosso tempo, da qual fazemos parte, não é menos decadente que a nobreza de Ochs.

Enquanto as mais diversas pessoas e situações passam pelo ruidoso quarto da Marechala, surgem um flautista e um tenor italiano. Para a parte do flautista Kosky escalou ninguém menos que o Tempo, que entra com uma flauta de pan, como a utilizada por Papageno em Die Zauberflöte. Quanto ao tenor, figura caricata, exagerada, é geralmente uma sátira da ópera italiana. Mas não para Kosky!
Em um belíssimo momento de sonho, onde todo o ruído dá lugar à poesia e à nostalgia, a iluminação torna-se solar, o cinza do ambiente dá lugar ao dourado que o palácio teve outrora, e o tenor mexicano Galeano Salas entra em trajes barrocos, com direito a plumas, e canta. Por alguns instantes, parece que o tempo volta. A interpretação de Salas começa de forma vacilante, imprecisa, mas vai ganhando corpo ao longo da ária, chegando a um resultado bastante bom.
Embora não apareça no segundo ato, e só volte a pisar no palco no fim do terceiro, outra personagem dominante, e que vai ganhando força e complexidade durante o processo de composição da ópera, é a Marechala. No primeiro ato é ela quem reina. Trata-se, segundo Richard Strauss em trecho citado no livro As Óperas de Richard Strauss, do querido e saudoso Lauro Machado Coelho, “de uma grande dama que já teve alguns amantes antes de Octavian e, certamente, terá outros depois dele”. Saber dominar a cena com altivez, classe, sem exagero, com certa melancolia e ironia, e ainda dando conta de uma linha mais lírica, não é tarefa fácil. Sai-se muito bem a experiente soprano alemã Marlis Petersen.
Ao olhar-se no espelho, Marie Thérèse se dá conta de que o tempo havia passado, e ela, envelhecido. A música, até então agitada como o populoso quarto, torna-se delicada e introspectiva enquanto a Marechala dispensa todos e começa a refletir sobre o tempo que, sem que nos demos conta, não para de correr. Na redução de Klobe, o solilóquio da Marechala começa, como num lied, com acompanhamento de piano. Ela lembra que já esteve no lugar que hoje é da jovem Sophie, quando saiu do convento para o matrimônio. Toma consciência das transformações impostas pelo discreto correr do tempo, que, de súbito, se fazem notar; do envelhecimento; da finitude.
Toma consciência de que “hoje, amanhã ou depois de amanhã” o garoto Octavian a trocará por uma moça bela e jovem. Revela levantar-se, durante a noite, a fim de parar os ponteiros dos relógios – aqueles mesmos ponteiros que, desde os primeiros acordes, vimos girar, e girar, e girar… Quando Octavian retorna e a encontra nessas reflexões, mostra-se insensível como bom adolescente e, mais que isso, chocado. Fica evidente, mais que em qualquer outro momento, a diferença e o distanciamento entre a Marechala e Octavian (ou Quinquin, como ela o chama). Essa diferença, aliás, também é explicitada musicalmente em seus respectivos temas: um (o de Octavian) acentuado, agitado, e o outro tranquilo, legato.
A Marechala repreende o jovem dizendo, segundo tradução de Lauro Machado Coelho em seu livro citado alguns parágrafos acima: “Oh, seja bonzinho, Quinquin. Angustia-me ter a consciência, lá no fundo de meu coração, da fragilidade de todas as coisas nesta terra, de como não podemos deter nada, de como não podemos reter nada, de como tudo escorre entre os nossos dedos, como tudo o que seguramos se dissolve, como tudo se desfaz como a nevoa ou um sonho”.
“Neste texto”, observa Machado Coelho, “em que reaparecem as metáforas barrocas da água que escorre, da neve e do sonho, ligadas à efemeridade das coisas, as ideias sobre o tempo inexorável e a velhice e morte inevitáveis, que preocupavam precocemente Hofmannsthal, desde seus tempos de adolescente, assumem uma dimensão ainda mais profunda, pois estão situadas no quadro mais amplo da evocação de toda uma sociedade que agoniza, ainda sem o saber”.
No fim do século XIX, a vida da sociedade vienense começou a mudar em todos os aspectos. Politicamente surgiram incertezas abalando o conforto da sociedade, em poucos anos eclodiria a Grande Guerra, marcando o fim da monarquia, da nobreza. Na arte, a Wien Secession, ou o movimento de Secessão, uniu artistas de todas as áreas, como Gustav Klimt, Koloman Moser, Josef Hoffmann, Max Klinger, etc., que romperam com a Künstlerhaus vienense, que para eles havia se tornado estanque, conservadora; na psicologia, Freud dava os primeiros passos na fundação da psicanálise; a música buscava se reinventar à sombra de Beethoven e Wagner.

Um momento que merece especial destaque, e que rendeu o título definitivo à ópera, é a linda e célebre apresentação da rosa quando, escolhido pela Marechala como emissário do Barão Ochs, Octavian vai entregar a rosa a Sophie. “O título definitivo”, explica Machado Coelho em seu saboroso texto, “refere-se a um ‘antigo costume matrimonial’ vienense: o de o noivo pedir a alguém da família que fosse apresentar à sua pretendida, em sinal de afeto, uma rosa de prata. Belíssimo costume, que tem apenas um defeito: nunca existiu!”. Em Elements of Time in Der Rosenkavalier, Lewis Lockwood observa que a invenção não foi gratuita, mas “epitomiza a formalidade do comportamento social aristocrata e captura o espírito do ‘ancien régime’ como pano de fundo para a trama”.
Em um momento de extrema beleza em Munique, o cavalheiro chega em uma carruagem toda prateada e conduzida pelo velho Tempo (cujas asas, escuras no primeiro ato, aqui já estavam bem mais claras). Em cena, também a cama de Sophie. Seria tudo um sonho ou realidade? No fim da ópera, Sophie dirá: “É um sonho, não pode ser verdade que estamos juntos, juntos por todo o tempo e a eternidade”.
Quando os jovens amantes comentam sobre o perfume da rosa, é como se fossem tomados por um encantamento e se descobrissem apaixonados. A música, extremamente lírica e delicada, dá a sensação de que o tempo, por alguns instantes, para. Como que perturbada por um tema de notas meio erráticas, essa música, porém, representa o brilho disforme, em todas as direções, da rosa de prata.
Se por um lado esse brilho encanta, traz também algo de inquietante, de transformador. Momento marcadamente sedutor, é impossível ouvir a linha de Sophie ao receber a rosa e não lembrar de Mon coeur s’ouvre a ta voix, da ópera Sansão e Dalila, de Saint-Saëns. Muito provavelmente, não é por acaso que a melodia que soa na ópera de Strauss é a mesma de quando, no ponto culminante da ária, Dalila canta “Ah! Verse-moi, verse-moi l’ivresse”.
Na nova produção de Munique, a sala do burguês Faninal, onde se passa o segundo ato, está coberta por quadros barrocos. Deles começam a saltar figuras como faunos: a criadagem de Ochs (que o libreto descreve como “o caçador, com modos grosseiros, e uma atadura no nariz quebrado, e mais dois, de aspecto semelhante…”). Uma ideia simplesmente genial de Kosky.
É bastante rico e interessante o personagem de Octavian. Começa infantil, despreocupado, ingênuo, duvidando das mudanças trazidas pelo tempo, e um tanto rebelde. Escolhido como o nobre cavalheiro emissário da rosa de prata, apaixona-se à primeira vista por Sophie, quando tem início a sua transformação. “Eu era um menino que não a conhecia. Mas quem eu sou? (…) Se eu não fosse um homem perderia os sentidos”, diz Octavian.
No final, resolvido o problema do indesejado casamento, diante de Sophie e da Marechala, Octavian fica confuso, sério, aprende a calar, a esperar, a observar. Torna-se homem maduro. Aliada à direção cirúrgica de Kosky, Samantha Hankey, com sua desenvoltura e seu timbre quente, transmite de forma precisa todo esse rápido processo de transformação sofrido por Octavian e lida muito bem com o travestimento duplo.
Após a estreia de Elektra, Strauss declarou que queria fazer uma comédia mozartiana. Em Der Rosenkavalier, é impossível não se lembrar de Don Giovanni, Così fan Tutte (aqui, em Strauss, mudando para Tutti!), Die Zauberflöte e, sobretudo, de Le Nozze di Figaro. O primeiro e mais evidente eco de Mozart que se nota em Der Rosenkavalier é o personagem de Octavian, um herdeiro direto de Cherubino, o pajem de Le Nozze.
Ambos são garotos com os hormônios transbordando e que devem ser interpretados por uma mezzosoprano – são, portanto, papeis travestidos. Ambos estão descobrindo sua sexualidade, buscam mulheres mais velhas, casadas, mas acabam, no fim, com suas jovens amadas. Ambos se disfarçam e se fazem passar por mulheres. Para não ser descoberto, tanto no primeiro ato, quanto no terceiro, Octavian se veste de camareira e cria a personagem Mariändel.
No início da ópera, o disfarce tem o intuito de não ser descoberto, no quarto da Marechala, por Ochs. Depois, como em Le Nozze, ele faz parte de uma farsa para livrar Sophie de Ochs. Há outros possíveis paralelos que podem ser feitos entre Der Rosenkavalier e Le Nozze, como a Marechala e a Condessa, o Barão Ochs e o Conde Almaviva.
Musicalmente, algumas citações e semelhanças com Mozart evocam esse entrelaçamento de vários tempos. Embora o tempo da ação da ópera seja um pouco anterior ao das óperas de Mozart, é bem próximo. A redução de Kloke torna mais evidente esse elemento neoclássico da obra – artifício em que Strauss viria a se aprofundar em sua próxima obra, Ariadne auf Naxos.
Diferentemente das famílias aristocratas dos anos passados, como a de Marie Thérèse, nas famílias burguesas começa a surgir espaço para a contestação. Sophie luta contra um casamento que, como anunciou Octavian, levando Ochs a cair na risada, ela não queria. Mais que se rebelar como boa adolescente, Sophie luta por seu objetivo.
Ela vê, porém, que também a vida de Octavian possuía lá os seus mistérios um tanto picantes. Ameaça outra revolta, mas aí a razão já havia cedido ao sentimento. À intérprete de Sophie cabe, pois, alternar momentos de meiguice quase infantis com outros de rebeldia e ainda os de maior sensibilidade e lirismo, sobretudo ao receber a rosa. É perfeita a interpretação da soprano Katharina Konradi, com seu timbre leve e lírico.
O terceiro ato retrata uma farsa à la Molière armada por Octavian a fim de revelar Ochs a Faninal. Kosky a ambienta em um teatro tendo o Tempo como ponto. No final do ato, a farsa é um sucesso, e o compromisso de casamento, desfeito, mas Ochs não consegue perceber que tudo havia desmoronado. “Não entende quando uma coisa acabou?”, pergunta-lhe a Marechala.
Na música, melodias do primeiro ato, da cena entre a Marechala e Octavian, das reflexões sobre o implacável tempo. Quando, finalmente, o Barão se retira, a Marechala tem de enfrentar o fato de que aquilo com que ela sabia que fatalmente se defrontaria, o do fim de seu relacionamento com Octavian, havia chegado bem mais cedo do que ela esperava. Está ela diante de Octavian e Sophie, e não pode, como o Barão, tentar negar o fim. “Hoje, amanhã ou depois de amanhã. Eu não disse a mim mesma? É o que acontece a toda mulher. Eu não sabia?”.

Em um dos momentos mais belos da ópera, Octavian, Sophie e a Marechala cantam em um trio onde os seus sentimentos soam simultaneamente e em harmonia. De forma segura e encantadora, a Marechala de Marlis Petersen inicia o trio: “Prometi amá-lo honestamente, que amaria inclusive uma outra que ele amasse. Francamente, não achava que teria que cumprir a promessa tão rápido. Há tantas coisas no mundo em que não conseguimos acreditar quando delas ouvimos falar. E, de repente, quando as vivenciamos, passamos a acreditar”.
Enquanto isso, Sophie e Octavian tentam entender o que está acontecendo. Octavian intimida-se diante da Marechala, Sophie sente um misto de gratidão, quase devoção, e ciúmes. “Os jovens são assim”, diz Faninal à Marechala, apontando o casal enamorado, ao que ela responde: “Ja, ja” (Sim, sim). Quanta coisa a expressividade de Petersen fez caber nesse “Ja, ja”!
Relógio e Tempo voltam ao palco. Dessa vez, com o Tempo sentado sobre o relógio. A Marechala à frente. O casal, segurando a rosa de prata, como em um conto de fadas, levanta voo e segue cantando o sonho que estão vivendo. Pura poesia. Até o Tempo se sensibiliza e tira o ponteiro do relógio. Será que agora ele dá uma trégua?
