Como ocorre todos os anos, no dia 07 de dezembro passado, dia de Santo Ambrósio, padroeiro de Milão e bispo da cidade no século IV, teve início a temporada do Teatro Alla Scala de Milão. Além de ser um evento de destaque na agenda dos aficionados por ópera, la prima della Scala tem importância nacional e conta com a presença de autoridades italianas — prefeito, presidente da república, primeiro ministro, etc –, nomes do meio artístico e da alta sociedade. Aumentando ainda a abrangência do evento, nos últimos anos amantes de ópera do mundo inteiro têm podido acompanhar a abertura da temporada através das transmissões em cinemas, canais de televisão europeus e pela internet.
Neste ano, além da abertura da temporada, a noite também marcou a estreia de Riccardo Cailly como maestro titular doLa Scala. Em 2016 Chailly deixará, após 11 anos, a direção do Gewandhaus de Leipzig para voltar para Milão, sua cidade natal, onde, lá mesmo no La Scala, foi assistente de Claudio Abbado. (http://www.theguardian.com/music/2015/oct/09/riccardo-chailly-leipzig-gewandhaus-conducting-interview).
Outra particularidade da abertura deste ano foi o forte sistema de segurança montado, o temor de atentado terrorista e a homenagem prestada às vítimas dos recentes ataques a Paris. Neste sentido, a escolha do título foi uma interessante coincidência: Giovanna d’Arco, de Giuseppe Verdi, que tem como protagonista a heroína e padroeira da França, líder militar na Guerra dos Cem Anos, que morreu em 1431, em Rouen, lutando por seu país. A história de Joana D’Arc foi praticamente esquecida até o século XIX, quando monarquistas franceses se apropriaram da história da corajosa guerreira que se manteve fiel a seu rei. Também o romantismo se interessou pelo assunto e, em 1801, o escritor alemão Friedrich Schiller (1759-1805) escreveu sua peça Die Jungfrau von Orléans (A Donzela de Orleans), que inspirou as óperas de Verdi e Tchaikovsky. Em 1909 Joana D’Arc foi beatificada e em 1920, canonizada pela Igreja Catóilca — depois da estreia da peça e das óperas.
Estátua de Joana D’Arc na Rue de Rivoli, Paris.
Sétima ópera de Verdi, Giovanna D’Arco estreou com sucesso no La Scala em fevereiro de 1845 e está agora retornando ao palco milanês após uma ausência de 150 anos, desde setembro de 1865. Na entrevista exibida no intervalo da ópera, Chailly fala da responsabilidade que é interpretar Giovanna D’Arco em Milão em virtude da beleza da obra e da importância do teatro. Ele lembra, ainda, que é uma ópera na qual Verdi acreditou muito. De fato, na época da estreia o compositor a considerava a melhor de suas obras. “Eu creio muito no teatro do jovem Verdi”, diz o maestro, e observa que mesmo sendo obra de juventude, “Giovanna d’Arco contém elementos que mostram-nos o Verdi que ele viria a se tornar em poucos anos: o gênio criador de obras primas”.
Não só dramaticamente, mas também musicalmente podemos ouvir ecos do futuro Verdi. O dueto final de Don Carlo, a ária da Lady Macbeth, Otello, Aida, La Traviata… Várias ideias musicais dessas óperas mais célebres e representadas já estão presentes em Giovanna D’Arco. Uma característica importante e particularmente saborosa da orquestração é o destaque dado às madeiras, com momentos de uma leveza, uma transparência camerística. Pouco mais de um par de minutos após o vigoroso início da abertura, com acompanhamento em pizzicato das cordas, flauta, clarinete e oboé tocam um tema que podia ter sido composto por Ernesto Nazareth. E assim, por alguns minutos, a maioria dos músicos da orquestra apenas observa seus solistas. Não tarda muito, porém, para esse momento de lirismo angelical dar lugar à agitação, à urgência, nos remetendo à situação de guerra sangrenta que vivia a França na época de Joana D’Arc, e a uma marcha militar (https://www.youtube.com/watch?v=rN0msDt3Ads).
Por que, então, a ópera é tão pouco representada? Anna Netrebko, a principal soprano da atualidade, que estreou como Giovanna D’Arco no Festival de Salzburg em 2013 e viveu a heroína no La Scala, tem a resposta: “Porque olibretto é um nonsense, não tem estrutura, é historicamente errado, não é interessante, etc, etc, etc. E eu acho que nessa produção os diretores tiveram a grande ideia de fazer tudo como um delírio de uma moça que era obcecada por Joana D’Arc.”
A direção cênica ficou a cargo da dupla Moshe Leiser e Patrice Caurier. O palco se transformou em um quarto, supostamente de hospital, onde uma pessoa doente delira, tem visões e revive a história de Joana D’Arc. Longe de ser monótona, a montagem é dinâmica e plasticamente bonita, sobretudo no segundo ato, cuja imagem está reproduzida acima, quando há a coroação do rei na catedral de Reims.
“Verdi coloca no centro de sua ópera a ideia de loucura, a ideia de alucinação, a ideia de alguém que vê coisas, que ouve coisas que os outros não ouvem. Isso nos leva a uma abordagem (…) quase médica dessa personagem. É uma personagem exaltada, é uma personagem que delira (…). Então, o que tentamos fazer foi pegar todas as incoerências do libretto e encontrar uma forma de contar a história de modo que essas incoerências se transformassem em força,” explica Leiser no intervalo da transmissão. Embora não seja original a ideia de transportar uma história incoerente, inverossímil, para o campo da fantasia, neste caso se justifica, uma vez que as visões já fazem parte da personagem.
O tão criticado libretto foi escrito por Temistocle Solera — o mesmo de Nabucco e I Lobardi, A história, se não se pode dizer que é baseada, é pelo menos inspirada na peça de Schiller. Quando uma peça é transformada em ópera, é natural que o libretista reduza o número de personagens e simplifique a trama. Porém, nesse caso, personagens chave foram eliminados e o enredo, consideravelmente modificado. Um drama nacional foi reduzido a um drama doméstico entre Joana, seu pai e o Rei Carlos VII. Estão fortemente presentes a tensa relação entre pais e filhos e um amor que se opõe que se confunde com as questões de estado, temas constantes na obra de Verdi.
Em linhas bem gerais, a peça de Schiller começa com Thibaut D’Arc, pai de Joana, designando um marido para cada uma de suas três filhas, a fim de que fossem protegidas na terrível guerra que estavam enfrentando. Para Joana, o escolhido é Raimond, que jura amá-la. Joana, porém, não atende à vontade do pai, diz que não está destinada por Deus ao casamento e começa a pronunciar-se sobre a guerra. O pai replica que é o demônio, e não Deus, que a inspira. Joana deixa sua vila, seu campo onde é pastora, e parte para a guerra, onde conquista a vitória que garante a coroação de Carlos VII como Rei da França. Como na ópera de Verdi, Joana é avisada, por anjos, que se perderia se se envolver com algum homem. Ao contrário da ópera, porém, não há qualquer envolvimento amoroso entre Joana e o rei. O homem que causa sua derrota é Lionel, um oficial inglês, inimigo. Em batalha Joana vê o rosto do oponente e não consegue mais matá-lo. Os dois se apaixonam. A partir desse momento, Joana se julga indigna, por ter se apaixonado por um inimigo, e pecadora. Durante a coroação do rei seu pai, que ficou perturbado após a partida de Joana, reaparece e a acusa de ter sido guiada pelo diabo, de ser feiticeira, e não a enviada de Deus. Como o olhar de Lionel a tornou indigna, Joana não se defende, acata o novo desígnio divino e deixa que o povo acredite que ela é uma feiticeira. Ela é exilada e o fiel Raimond a acompanha. É, porém, capturada pelo exército inglês. Raimond consegue fugir e narra o ocorrido aos franceses, contando-lhes, inclusive, que ela não é feiticeira. Eles vão para libertá-la, entrando novamente em confronto com os ingleses. Quando os seus estão perdendo, Joana invoca os poderes celestes, consegue libertar-se e torna os franceses vitoriosos. Joana, porém, é mortalmente ferida. Como na ópera de Verdi, os franceses vencem a batalha final, mas Joana é morta. Na peça e na ópera, Joana morre lutando.
Em Verdi, Joana, em bela aria, lamenta a situação da França ora pela inspiração divina (https://www.youtube.com/watch?v=SVk3frhhvkQ). É inspirada a deixar os seus e partir para aluta, também vence as batalhas para os franceses e, na coroação, também é acusada por seu pai, que logo no início da ópera aparece rezando para que o coração da filha não se deixe enganar pelo demônio. Não ficam claras, porém, as razões do pai para crer que o maligno se apossou de Joana. Na ópera, o rei, que por ela se apaixonou, é o único a não crer nas acusações. Na peça, o rei envia aquela a quem deve a coroa ao exílio. Na ópera, quando Joana é presa pelos ingleses, o pai a vê rezando, implorando a Deus, e se convence de que é com Deus, e não com o diabo, que ela se relaciona. Numa cena tipicamente verdiana, arrepende-se, pai e filha se reconciliam, e ele a ajuda a fugir. É aí que ela parte para a batalha final. Na peça não se tem mais notícias do pai, não existe o encontro de reconciliação e ela foge graças à sua força espiritual.
A Donzela de Orleans (1881), de Tchaikovsky, está bem mais próxima da peça de Schiller do que Giovanna D’Arco. A ópera começa com um coro de camponesas pastoral, russo, e conta com momentos bastante inspirados, como a célebre ária em que Joana, antes de seguir o comando divino e ir à batalha, se despede de seu campo (https://www.youtube.com/watch?v=bQFkcUvJRJA). Embora tenha um libretto mais bem estruturado, a ópera de Tchaikovsly perde da de Verdi em dramaticidade Verdi. Aumentando ainda mais a deficiência do ponto de vista dramático, no final Tchaikovsky descola-se de Schiller. Joana entrega-se à sua paixão por Lionel e após um belo dueto onde Tristão e Isolda, de Wagner, é quase que explicitamente citado, Lionel é morto e Joana, queimada viva pelos ingleses. Tchaikovsky preferiu um desfecho plenamente romântico e próximo ao que normalmente se contar sobre Joana D’Arc a seguir Schiller e permitir que Joana morresse lutando. Com essa escolha enfraqueceu sua personagem.
Nas três obras é interessante se notar o papel da mulher. Em Schiller fica claro o escândalo que causou ao pai ver uma filha, ao invés de obedecer seu pai e aceitar o marido, resolver se envolver com assuntos de guerra, que não são para moças. Só podia ser coisa do demônio. Ao longo de toda a peça, os guerreiros tentavam afastá-la das batalhas, tentando convencê-la a, a partir de um certo ponto, deixar o confronto para os homens. Os adversários também custavam a crer que uma mulher os estava derrotando. Poder sobrenatural era a única explicação possível. Verdi, por sua vez, já demonstra, com Giovanna, sua capacidade de criar mulheres fortes, condutoras da trama, capazes de aceitar qualquer sacrifício. Em Tchaikovsky, de certa forma Joana revive o sofrimento da introspectiva Tatiana.
Conforma já mencionamos, no La Scala Anna Netrebko viveu Giovanna. Personagem dramática, cheia de nuances, serviu bem à voz firme, dramática e envolvente de Netrebko. À exigência da partitura somou-se a escolha dos diretores. Como tudo era fruto de sua imaginação, teve que se manter o tempo todo no palco o que, cenicamente, é sempre um desafio. Como rei, saiu-se muito bem Francesco Meli, tenor italiano. No papel de pai, Devid Cecconi substituiu Carlos Alvarez. Como raramente ocorre, não houve vaias. O único incidente registrado se deu nos bastidores, entre Moshe Leiser e o maestro Chailly.