Altra legge io non ho, che il mio capriccio. M’intendi? (Não tenho outra lei além do meu capricho. Talkei?)”, diz o Mustafá, um dos protagonistas de L’Italiana in Algeri (1813), ópera de Gioachino Rossini (1792-1868) com libreto de Angelo Anelli (1761-1820), após ter sido lembrado por Haly, capitão dos corsários, de que não poderia, segundo a lei de Maomé, entregar sua esposa, Elvira, da qual já estava cansado, para Lindoro, seu escravo italiano. Para substituir sua esposa, o Mustafá busca uma italiana. O capitão Haly, porém, não precisou fazer muito esforço para achar a italiana ideal: enquanto era cobrado, naufragava, em Argel, um navio italiano contendo Isabella, que estava em busca de Lindoro, seu amado. Isabella não estava sozinha: com ela também estava Taddeo, outro admirador seu. Ao perceber a situação em que havia se metido, Isabella logo decide que era preciso vencer o Mustafá com astúcia. E assim o faz, comandando o resgate de Lindoro e a fuga dos italianos.

Óperas de resgate há muitas. Contudo, ao lado de Fidelio, de Beethoven, que estreou oito anos antes, é uma das poucas óperas em que é uma mulher quem vai resgatar um homem – e em ambos os casos, seu amado. Também como Fidelio, tem forte caráter político e ataca diretamente as práticas autoritárias.  

Embora aborde o machismo e o tratamento dado à mulher, não é a “guerra dos sexos” o tema central do libreto. L’Italiana in Algeri estreou em 1813 – antes, portanto, da unificação italiana – em uma Veneza disputada pelos exércitos napoleônicos e dos Habsburgos. Essa trama extremamente politizada trata, portanto, da Itália, dos italianos. 

A forma utilizada por Rossini é aquela da qual se tornou mestre: a opera buffa, a comédia. Fortemente teatral, é herdeira da Commedia dell’Arte, forma artística difundida por trupes italianas durante o Renascimento. Segundo Burton D. Fischer, os membros das trupes “tradicionalmente usavam máscaras para esconder a identidade: a proteção era necessária devido ao fato de que eles estavam satirizando e ridicularizando seu mundo contemporâneo; os artistas faziam palhaçada, insultavam e ridicularizavam todos os aspectos da sociedade e suas instituições através da representação de situações humor ou hipocrisia envolvendo servidores astutos, doutores calculistas e mestres enganados.”

Trata-se, portanto, de sátira que, por definição, deve falar aos nossos dias, à nossa vida, ao nosso tempo; deve desafiar nossos doutores, nossos governantes, nossas ideias. No libreto em questão, é apenas a palavra Mustafá que define o tempo da história na época em que a Argélia era dominada pelo Império Otomano. A trama em si, porém, é extremamente atemporal, tratando de temas que, ainda hoje, duzentos anos após a estreia, frequentam as crônicas de nossos jornais. Pode-se concluir, portanto, que sem agredir o libreto é possível trazer a ação para mais perto de nós; e quanto mais familiares nos soarem os personagens e as situações, mais forte e sincera a comédia, mais viva a obra de Rossini.

Felizmente foi essa a opção feita pela diretora Livia Sabag na excelente produção em cartaz no Theatro São Pedro que, cada vez mais, apesar de sua pouca verba e seu pequeno tamanho, vem se consolidando como o principal teatro de ópera de São Paulo.  Com a muito bem-acabada cenografia de Daniela Gogoni, a ação é transportada para bem perto de nós. Conforme explica Sabag em entrevista à Folha de São Paulo: “Quando comecei a levantar as imagens da Argélia contemporânea, muitas coisas eram parecidas com o Brasil”. Desse modo, a ópera começa em um local tropical, que nos soa bastante familiar, e um tanto precário, com um muro um pouco descascado, antena parabólica presa a uma laje e figurinos simples. Na segunda cena, que se passa em meio a containers, vemos que, como comenta Sabag no jornal O Estado de São Paulo, Mustafá, de contrabandista, “vira um líder que rouba cargas e pessoas”. Aproximando mais ainda a sátira da realidade do nosso Brasil, numa cena bem pensada, de humor bem medido, Sabag expõe o ridículo, que beira a infantilidade, fetiche armamentista do atual autoritarismo populista que prospera no país.

Mesmo com o vestuário modernizado, mesmo sem turbantes e roupas a caráter, os figurinos de Fabio Namatame promoveram nítida distinção entre os opressores turcos e os italianos lá presos. Com trajes absolutamente fechados e recatados para as mulheres e mais antiquados, simples ou militarizados para os homens, os habitantes locais eram bem diferentes dos moderníssimos italianos.

A música de Rossini também separa bem as coisas. Enquanto Mustafá e as pessoas de seu entorno têm árias marcadamente cômicas e sem qualquer melodia lírica, vale o oposto para Lindoro e Isabella, os italianos que não soam e nem podem soar ridículos – ao contrário, mal podem crer na ingenuidade do ridículo líder autoritário, que se acha muito esperto e poderoso sem saber que está prestes a ser vencido pela inteligência de seus prisioneiros. Se Taddeo, o italiano que acompanhava Isabella, muitas vezes soa ridículo, é, porém, de modo bastante diferente dos argelinos. Taddeo é vítima de seu amor pela jovem e bela Isabella, amor cego a ponto de crer que é correspondido. Contudo, contribui no plano de enganar o Mustafá. Nesse aspecto, na consciência do perigo em que se encontra em terra estrangeira, está plenamente conectado com a realidade: vem daí o vigor que, musicalmente, demonstra.

Há, na música, além do cômico e do lírico, pelo menos uma referência política do tempo e da Europa de Rossini. No fim da ópera, em coro, os escravos italianos cantam que estão prontos, com as armas nas mãos, para fugir com Isabella. E completam:

Pronti abbiamo e ferri e mani
Per fuggir con voi di qua,
Quanto vaglian gl’Italiani
Al cimento si vedrà.

(Estamos prontos, com armas nas mãos, para fugir daqui com você. Eles vão ver quanto valem os italianos).

Como nos mostra o genial Philip Gossett em seu  livro Divas and Scholars: Performing Italian Opera, a melodia é, sobretudo do ponto de vista rítmico, é bem próxima de La Marseillise:

2019-08-03

Não eram armas, porém, que Isaballa tinha em mente. Já estava surtindo efeito seu plano de vencer o Mustafá com astúcia, com a inteligência da qual ele não dispunha. Aproveitando-se do fato de que ele estava deslumbrado com a Itália e com italianos (italianas, mais especificamente!), elaborara, juntamente com Lindoro, uma estratégia para enganar o Mustafá, convencendo-lhe, com a ajuda de Taddeo, de que para conquistar italianas como Isabella, era infalível a obtenção do título italiano de pappataci (come e cala), o que se daria através de um ritual, e esse ritual é anunciado pelo delicioso coro dos pappataci. Impactante e de grande beleza, o coro, na produção em cartaz no São Pedro, canta com cravos nas mãos – aqueles mesmos cravos que em abril de 1974, em Portugal, na Revolução dos Cravos, eram oferecidos pela população aos militares insurgentes que se opunham à ditadura, ao longo período de autoritarismo, e que eram por eles colocados nas pontas das armas, significando que não elas não seriam utilizadas, que a ditadora seria derrubada de forma pacífica. Em resposta à violência das armas, de La Marseillaise, Rossini e Anelli utilizaram-se da astúcia de Isabella; Livia Sabag fez uso com bom gosto, como os portugueses, dos cravos.

No fim da ópera, após a fuga dos italianos, o Mustafá, percebendo que foi traído, se reconcilia com Elvira, sua esposa, a quem declara amor. É seguido, portanto, o modelo de libreto veneziano, estabelecido por Giovanni Faustini quase duzentos anos antes: sátira com muitos personagens e trocas de casais, cujo imbróglio é resolvido no final, por falta de opção ou decisão dos personagens.

De todo o conteúdo até aqui discutido, se a exposição tiver sido minimamente clara e bem-sucedida, deve ter ficado claro que essa opera buffa rossiniana, como é comum em boas sátiras, ridiculariza um líder autoritário sem cair, em momento algum, no riso fácil, na gargalhada forçada e vulgar. Para isso foram criados libreto e música da melhor qualidade — música deliciosa! Com isso contribuíram fortemente, na produção paulistana, ótima direção musical, elenco homogêneo e impecável, cena, a poderosa iluminação de Wagner Antonio e direção de atores. E esse último aspecto merece, nesse momento, ser salientado. A movimentação vista sobre o palco foi teatro de verdade. Não houve um momento sequer em que algum cantor/ator tenha ficado inutilmente no palco, sem ação, sem saber o que fazer com as mãos; não houve qualquer movimento artificial, gratuito ou sem sentido. Livia Sabag deu uma bela demonstração de direção de atores e obteve, felizmente, boa resposta do elenco escalado.

Em toda a ópera, pouco vale o sucesso cênico se, musicalmente, não for executada de forma satisfatória e o que se ouve também não for convincente. Como apontado acima, foi também louvável a direção musical, sempre em sintonia com os cantores, de Valentina Peleggi, uma italiana que tem a ópera no sangue, na família, e que atualmente é regente associada da English National Opera de Londres. A ela respondeu muito bem a Orquestra do Theatro São Pedro e nos levou a sonhar: quem sabe um dia a orquestra não pode voltar a crescer e a ter um maestro titular da qualidade de Peleggi para construir e lapidar, continuamente, a sua sonoridade?

Rossini é puro bel canto. Dizia Maria Callas que a tradução para bel canto não era “canto bonito”, mas canto. Trata-se da essência do canto. Expressividade, coloraturas, ornamentos… tudo no bel canto exige um canto relaxado, ágil e com técnica apurada. Sobretudo nas cenas em conjunto, rápidas e fortemente sincronizadas, a essas habilidades se soma a precisão. De um modo geral, todo o elenco se saiu muito bem nos desafios proporcionados por esse tipo fundamental de canto, demonstrando, inclusive, muita agilidade e articulação. O célebre septeto, no fim do primeiro ato, foi a maior prova disso.

O coro também respondeu muito bem ao canto rossiniano e às direções musical e cênica. Bem entrosado, bem timbrado, sem desencontros, o coro deu boa fluência à obra, sobretudo em suas cenas finais.

Como Zulma e Elvira, saíram-se muito bem, respectivamente, Catarina Taira e Ludmilla Bauerfeldt – embora Bauerfeldt, que tem brilhado, com sua voz bela e bem projetada, nas apresentações junto à OSESP, em virtude de escolha estilística ou da técnica utilizada, tenha prolongado um pouco as notas e utilizado um vibrato que tornou seu canto um pouco mais pesado que do resto do conjunto.  

O Mustafá foi vivido pelo baixo Stephen Bronk, um veterano dos palcos brasileiros, inclusive nesse papel. Se em seu canto, na cena inicial da ópera, faltou um pouco de agilidade e de reserva de ar – problema logo superado ao longo da apresentação –, sobraram experiência, presença cênica e muito carisma! Haly, seu capitão dos corsários, foi interpretado com desenvoltura, graça e competência pelo sempre ótimo Rodolfo Giugliani, um dos premiados, no palco do São Pedro, da edição de 2005 do Concurso de Canto ‘Maria Callas’.

Dos italianos, Lindoro é o primeiro a chegar em Argel e foi lindamente interpretado por Anibal Mancini. Dono de um belo timbre, voz clara e brilhante, é rossiniano nato. Se no começo, embora já exibindo sua voz cativante, pareceu padecer em alguma medida da insegurança típica de noites de estreia, foi crescendo ao longo da ópera e conquistando os ouvidos e corações do público. Vencedor da edição 2011 do Concurso Maria Callas, Mancini já havia brilhado no início deste ano em outro Rossini: no Theatro Municipal de São Paulo, como outro Lindoro – ou o Conde de Almaviva – em O Barbeiro de Sevilha. Salta aos ouvidos o futuro promissor de Mancini.

Como Taddeo, o barítono Douglas Hahn, outro premiado no Concurso de Canto ‘Maria Callas’, esbanjou sua voz possante – e uma voz limpa, com brilho e expressiva. Suas qualidades líricas se aliaram à ótima e extremamente convincente presença cênica na construção de um personagem forte e consistente.

Se o Mustafá é machista, despreza e descarta as mulheres, para vencê-lo ninguém melhor do que uma mulher segura, corajosa, decidida e com muito charme. E foi essa mulher a Isabella vivida pela ótima mezzo-soprano Ana Lúcia Benedetti, vencedora do Concurso de Canto ‘Maria Callas’ em 2009 e pupila da querida e saudosa mestra Isabel Maresca, que neste ano perdeu a batalha contra o câncer. Aparentando estar à vontade no universo rossiniano, com técnica perfeita, coloraturas bem executadas, afinação precisa e desenvoltura cênica, demonstrou que Callas estava certa quando se referia ao verdadeiro significado do bel canto. No segundo ato, contudo, sua cavatina Per lui cha adoro, onde invoca a deusa do amor e pede que a faça mais bela para seu amado, que tinha tudo para ser um dos pontos mais poéticos da noite, foi prejudicada por excesso de barulho no palco. Lindoro e Taddeo espiam seus preparativos e, na estreia, arrastaram vasos e abriram uma grade ruidosa, na qual está faltando óleo. Desse modo, o ininterrupto ruído de plantas e portões, que poderia ser consideravelmente diminuído ou totalmente suprimido, foi um abrutalhado intruso num momento tão sensível e sensual.   

 

Um resultado de tão boa qualidade nesse tipo de ópera, conforme já indicamos, não é algo fácil de ser obtido. É um resultado que depende muito do conjunto e Rossini tem uma música muito límpida, tanto do ponto de vista instrumental como de canto: qualquer falha grosseira, de qualquer membro do elenco, compromete o resultado do conjunto. Além disso, é uma obra fortemente teatral, também dependendo muito não só da direção, mas do talento cênico de cada um. Não bastasse isso tudo, é preciso que a obra flua, que tenha ritmo, que tenha vida. Foi o que, sob a liderança de duas mulheres, duas ‘Isabellas’, Valentina Peleggi e Livia Sabag, a produção do São Pedro conseguiu realizar. Isso a torna, a nosso ver, a melhor ópera produzida em 2019 na cidade de São Paulo.

Fora o ensaio geral, L’Italiana in Algeri conta com apenas cinco récitas, todas praticamente esgotadas, todas concorridas. Isso já ocorreu com as produções anteriores. Não seria o caso de, em temporadas futuras, talvez no próximo ano, o São Pedro pensar em estender um pouco mais, algo como uma semana a mais, a permanência de cada título em cartaz?

 

L’Italiana in Algeri está em cartaz no Theatro São Pedro até 11/08/2019.

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