
No dia 14 de março o Teatro Colón, em Buenos Aires, abriu sua temporada 2017 com Adriana Lecouvreur, de Francesco Cilèa, que introduzimos no artigo anterior. Parece, porém, que a intenção do Colón não era fazer a abertura da temporada lírica em torno de uma ópera, mas em torno de uma soprano, a romena Angela Gheorghiu, que originalmente escalada para cantar o papel título. Porém, a diva fez aquilo que é a sua especialidade e estratégia de marketing: arrumou uma briga, fez uma cena, ganhou destaque na mídia e cancelou. Gheorghiu viajou para Buenos Aires, chegando na capital argentina alguns dias depois do combinado, exigiu a mudança para um hotel mais sofisticado, recusou-se a aceitar termos do contrato que já eram de seu conhecimento, não apareceu no Colón e voltou para casa metralhando nas redes sociais. A soprano, banida do Metropolitan Opera por sua irresponsabilidade e frequentes cancelamentos, tem em seu histórico atitudes desse tipo. Portanto, foi no mínimo arriscada a aposta do Colón, Angela Gheorghiu está longe de ser a “humilde serva do gênio criador”, conforme deveria ter cantado em sua primeira ária como Adriana Lecouvreur.
Após o cancelamento, a soprano argentina Virginia Tola, escalada para as récitas extraordinárias, foi transferida para as récitas principais no lugar de Gheorghiu. Segundo a assinante que estava sentada ao meu lado, na primeira fila, uma soprano “muito boa, protegida do Plácido Domingo”. A cantora é conhecida do público paulistano: em 2014 ela foi a Alice Ford no Falstaff do Theatro Municipal, no elenco encabeçado por Ambrogio Maestri. Nessa oportunidade já foi possível constatar que sua voz era pequena e seu vibrato, excessivo. Três anos depois e em papel diferente parece que nada mudou. Virginia Tola conseguiu vencer os desafios de seu papel, ela fez todas as notas, fez os agudos corretamente, com boa afinação, mas foi uma Adriana difícil de ser ouvida da plateia e pouco eficiente cenicamente.
É possível, porém, que a falta de envolvimento cênico de Tola não tenha sido culpa exclusivamente da soprano. Adriana divide suas cenas de maior dramaticidade com Maurizio, o Conde da Saxônia, vivido pelo jovem tenor italiano Leonardo Caimi. Embora tenha começado bem, seu desempenho vocal foi decaindo e sua voz, apresentando sinais de cansaço. Cenicamente, Caimi não convenceu em momento algum.
No elenco principal, no dia 18, o destaque ficou com as vozes graves que, infelizmente, são coadjuvantes. Se o Michonnet de Alessandro Corbelli foi muito bom cênica e vocalmente, o brilho ficou com a mezzo soprano búlgara Nadia Krasteva, a Princesa de Bouillon. Com sua voz forte e atuação marcante, foi a oportunidade de aplaudir e gritar “bravo!” que o público não perdeu. Completando o casal real, apesar de seu pequeno papel, o seguro vozeirão de Fernando Radó não deixou o Príncipe passar desapercebido. É de se lamentar que o Colón não tenha aproveitado material tão bom e inserido a ária do Príncipe, que é, de fato, normalmente suprimida, na qual ele narra, no terceiro ato, seus dotes de químico. Teriam sido cinco minutos a mais de ópera, mas com uma voz que teria soado com fartura.
No dia seguinte, na récita extraordinária com elenco cem por cento argentino, a situação se inverteu. As vozes graves não tiveram grande brilho. O Príncipe, Lucas Debevec, também tem um vozeirão, mas tem dificuldade em manejá-la. Guadalupe Barrientos, a Princesa, é dona de boa voz com peso nos graves, mas um tanto entubada e com dicção difícil de ser compreendida. Embora tenha ficado aquém do desempenho de Corbelli, não há o que se queixar do Michonnet de Omar Carrión.
O casal Adriana e Maurizio, vivido por Sabrina Cirera — que entrou no elenco de última hora em virtude do cancelamento de Gheorghiu — e Gustavo López Manzitti, teve uma atuação, se não perfeita vocalmente, muito mais envolvente e comovente que a do casal do elenco principal. Seguro e apresentando desempenho que se manteve constante ao longo da récita, Manzitti nos brindou com um Maurizio bastante convincente. Sabrina Cirera entrou um pouco insegura em sua estreia como Adriana. Seu vibrato às vezes dava trégua, às vezes se tornava excessivo e instável. Ao longo da récita, a soprano foi ficando mais à vontade embora nas árias seus agudos tenham saído “apertados” ou um tanto gritados. Contracenando com outros personagens, porém, parece que se esquecia de temer os agudos e eles brotavam com naturalidade. Portanto, parece que seu maior desafio é deixar sua voz fluir, fazer como Adriana: “respiro apenas”. Em sua ária Poveri Fiori, do quarto ato, onde Adriana lamenta as flores murchas que voltaram para ela, Cirera falhou nos agudos, mas o que são duas ou três notas agudas em meio a todas as outras e à interpretação magistral, sensível, que deu a essa ária? Virginia Tola nos deu os agudos, mas Sabrina Cirera nos deu Adriana, a musa da tragédia.

Sob a regência de Mario Perusso, a Orquestra Estável do Teatro Colón soou muito bem e diversas vezes assumiu o protagonismo. O spalla Freddy Varela Montero executou seus solos com brilho e musicalidade. Também a orquestra e o maestro parecem ter se envolvido mais no segundo dia. A concepção cênica de Anibal Lápiz foi absolutamente tradicional e plasticamente bonita. Embora tenham predominado momentos de boas ideias, um foi particularmente desastroso: o ballet do terceiro ato, que retrata o Julgamento de Paris, contou com uma coreografia duvidosa (quase uma não coreografia) e figurinos de mau gosto. Dentre os bons momentos podemos destacar a reprodução do teatro no palco, feita de forma desfocada, inteligente, sobretudo no final, quando Adriana está morrendo: enquanto canta a luz que a seduz, as luzes da plateia do Colón vão se acendendo lentamente, palco e plateia se confundem, produzindo um efeito de marcante beleza e sensibilidade.

Causou-nos estranheza a acústica do Teatro Colón, sobretudo a dificuldade de se ouvir os cantores estando na plateia. Em teatros grandes, como o Metropolitan Opera, isso, de fato, ocorre, mas não tanto quanto no Colón. É possível que o cenário, um tanto aberto, não tenha favorecido a projeção das vozes. Observamos que assistimos ao primeiro elenco da plateia e ao segundo da cazuela. Essa mudança das condições de acústica pode ter exercido alguma influência na percepção. Por isso não ousamos afirmar, por exemplo, comparar os volumes das vozes das duas sopranos.