Mi disse: “Quel folletto è Gianni Schicchi,
e va rabbioso altrui così conciando”. 
(Dante Alighieri, A Divina Comédia. Inf. XXX, vv. 32-33)

E assim Dante Alighieri (1265-1321) instala Gianni Schicchi, segundo ele um “patife”, no décimo compartimento do Inferno de sua Divida Comédia, onde são punidos os falsários. “Os falsificadores de moedas, tornados hidrópicos, são constantemente atormentados por furiosa sede (…).  Os que falaram falsamente são perseguidos por febre ardentíssima.” Dante explica que o motivo da condenação de Schicchi foi falsificar as formas e o semblante de outra pessoa: “Para em prêmio alcançar égua farfante: contrafez Buoso morto e ao testamento falso a norma legal deu, que é prestante”. Gemma Donati, esposa de Dante, era parente de Buono Donati, um rico burguês de Florença. Conta a história que quando Bueno Donati morreu, deixou sua fortuna para a Igreja como uma forma de compensar seu enriquecimento nem sempre em conformidade com a lei.  Gianni Schicchi, a pedido ou pelo menos com a cumplicidade de Simone, sobrinho (ou filho) de Buono, se faz passar pelo falecido a fim de refazer o testamento e obter vantagens. Mas não foi a falsidade a real (ou a única) razão que levou Dante a condenar Schicchi. Florentino burguês, Dante, como seus pares, não aceitava a “gente nuova“, os camponeses forasteiros como Schicchi, que estavam invadindo Florença.

Além dos versos de Dante, o episódio envolvendo Buono, Gianni Schicchi e o testamento aparece em um apêndice da edição de 1866 da Divina Comédia, adicionado pelo editor, o filólogo Pietro Fanfani, com comentários de um suposto florentino do século XIV. Foi nesse episódio que se inspirou Giovacchino Forzano (1884-1970) ao escrever o libreto da ópera Gianni Schicchi, que tem música de Giacomo Puccini (1858-1924).

Italianíssima, talvez a mais italiana das obras de Puccini, a ópera de um ato com duração de pouco menos de uma hora se passa toda na casa de Buoso Donati, em Florença. Uma casa italiana, uma família florentiníssima que parece ter saído de um filme de Fellini.  No ataque inicial da orquestra, a morte de Buono. Logo em seguida — enquanto a família se lamenta, fala, chora, faz planos, cogita sobre a herança e rumores de que o parente rico teria deixado tudo para a Igreja, procura o testamento — um tema se repete na orquestra. É um tema que remete ao amanhecer do dia, ao agito das pessoas e suas atividades; é um tema curto e recorrente, que não engata, que se repete e se transforma de acordo com a situação. No momento em que os familiares de Buono acham o testamento, o tema se torna lírico e Rinuccio, o jovem tenor, sobrinho do falecido, sonha que a herança possibilitará seu casamento, em maio próximo, com Lauretta, a filha de Gianni Schicchi e manda logo chamar pai e filha. Ao abrirem o documento, o tema dá lugar temporariamente a outro, o do testamento, também curto e que se repete, mas solene e, ao contrário do anterior que não era bem acabado, esse tem uma cadência que dá uma sensação de fim. Quando se confirmam os terríveis rumores sobre o testamento, Riniccio defende a ideia de que apenas Schicchi poderia salvá-los. Aos protestos da família, especialmente de sua tia Zita, contrária à presença do camponês, Riniccio responde com a ária Firenze è come un albero fiorito, em que defende que Florença é como uma árvore florida que na Piazza dei Signori tem seu tronco e sua copa, mas as raízes que lhe dão força dos formosos vales. Cita forasteiros como o pintor Giotto e os Medici, nomes fundamentais na história desse berço do Renascimento. Termina saldando a “gente nova” e Gienni Schicchi: Viva la gente nova e Gianni Schicchi!

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Mal recebido pela família falida, Schicchi comenta com a filha o quão pouco proveitoso seria o parentesco e não se mostra disposto a colaborar. Porém, com graça e lirismo, ela sabe muito bem dobrar o coração do pai. E Puccini sabe, também muito bem, que seu público espera pelo menos uma ária lírica e, como fez em Tosca com Vissi D’arte, em Gianni Schicchi escreveu para a soprano uma bela ária: O Mio Babbino Caro. Lauretta diz, na ária, ao seu caro paizinho, o quanto gostava do jovem e que pretendia ir comprar o seu anel de noiva na Via Porta Rossa — onde ficava o Mercato Vecchio, o centro da cidade em torno do qual estavam as casas das famílias que Dante promovera ao Paraíso. Se, porém, não pudesse se casar, iria à Ponte Vecchio para atirar-se no rio Arno. Não é, portanto, simplesmente cantada, aqui, a súplica de uma jovem apaixonada, mas a súplica de um amor florentino, que se mistura com a paisagem e a história da cidade.

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Na gravação acima a ária é interpretada por Florence Easton, que criou o papel em 1918 e realizou a gravação no mesmo ano.

Qual pai não se comoveria com uma ária dessas? É aí que Schicchi resolve se fazer passar por Buono. A tradicional família, que o desprezava, passa a ver nele a salvação de seu status. O Gianni, Gianni, nostro salvator! — cantam Zita, La Ciesca e Nella em doce trio enquanto preparam Schicchi para a empreitada.

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Antes, porém, de chamar o notário e ditar o testamento, Gianni Schicchi faz uma séria advertência e lembra uma lei em vigor em Florença: “Para quem substitui e em lugar de outro dita um testamento, para ele e para seus cúmplices, se lhes cortará uma mão e depois o exílio!” A essa advertência se segue um toque ameaçador na orquestra e o sentido lamento Addio, Firenze, indicando que perder Florença é, para eles, bem pior que perder uma mão.

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O testamento, quando os bens corriqueiros são distribuídos entre os familiares, começa como uma desinteressante ladainha. Porém, quando chega o momento de Schicchi se aproveitar da situação e se apropriar da mula, a melhor da Toscana, da casa e do moinho, a ladainha dá lugar a melodias que se interrompem, aos protestos da família, a ameaçadora advertência Addio, Firenze… O herói volta a ser vilão e a família o condena, como Dante, ao inferno.

Em posse da casa, Schicchi expulsa a família de Bueno: Vi caccio via di casa mia! A gente nuova consegue se infiltrar na burguesia local e os jovens de castas diferentes poderão, finalmente, se unir. Rinuccio e Lauretta celebram o seu amor e, em seu lírico e curto dueto, não se esquecem da bela Florença de ouro, que de longe parece o paraíso: Guarda… Firenze è d’oro! Fiesole è bella! Firenze da lontano ci parve il Paradiso!… E Gianni Schicchi nos pergunta se os centavos de Bueno poderiam achar melhor fim e lembra que por essa bizarrice foi parar no Inferno. Mas nos faz um apelo: “se nessa noite tiverem se divertido, concedam-me o perdão”!

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Ditemi voi, signori, se i quattrini di Buoso potevan
finir meglio di così? Per questa bizzarria m’han
cacciato all’inferno… e così sia; ma con licenza
del gran padre Dante, se stasera vi siete divertiti,
concedetemi voi l’attenuante!

Gianni Schicchi, a única comédia de Puccini, estreou em 1918 no Metropolitan de Nova York como a terceira de um trítico (Il Trittico) formado também por Il Tabarro e Suor Angelica. Embora as três tenham sido bem recebidas e façam, até hoje, tanto isoladamente quanto em conjunto, parte do repertório dos teatros de ópera, Gianni Schicchi logo de cara se destacou. James Gibbons Huneker, crítico do The New York Times que assistiu à estreia, comparou Il Trittico a uma sinfonia lírica “na qual Il Tabarro é o allegro inicial com uma coda preto; Suor Angelica como um adagio en blanc majeur (…); o terceiro movimento, Gianni Schicchi, um brincalhão, excêntrico scherzo, transbordando de alegres diabruras, não sem um toque do humor de Boccaccio ou um pouco da sagacidade e do desenho de personagens de Molière. E o último será o primeiro. Gianni Schicchi é evidentemente a mais individual das três composições. Nela Puccini atingiu grande distinção” (The New York Times, 15 de dezembro de 1918).

Gianni Schicchi, uma obra prima da maturidade de Puccini, pode ser comparada a Falstaff, também única e tardia comédia de Verdi, ou a Il Nozze di Figaro, comédia de Mozart com forte cunho social. Nos três casos, o protagonista, como é usual na opera buffa, é um barítono. Todas tratam da tentativa de ascensão social, da aceitação social, da hipocrisia da sociedade estabelecida. Gianni Schicchi tem, porém, a particularidade de definir muito bem essa sociedade com a Florença do fim do século XIII e início do XIV, tornando a cidade praticamente a verdadeira protagonista da ópera. No poeta florentino Dante está o ponto inicial; na família promovida ao paraíso e no forasteiro condenado ao inferno estão os personagens principais; a paisagem da cidade é o rico cenário — não só rico de ouro, mas também da criatividade do homem, da qual brota a arte, a poesia, mas também as tramas, os preconceitos e as intrigas. O Céu e o Inferno estão em Florença.

Gianni Schicchi S Pedro
A produção de Gianni Schicchi em cartaz no Theatro São Pedro

Gianni Schicchi promove a gente nouva, aquele que busca a ascensão. Assim também o Theatro São Pedro, com sua produção bem cuidada, bem pensada, muito bem dirigida tanto cenicamente por Davide Garattini Raimondi quanto musicalmente pelo maestro André dos Santos, promove os novos cantores da cena lírica brasileira. Tive a oportunidade de assistir ao ensaio geral da ópera, que estreia hoje tendo o barítono Johnny França no papel título. Há cerca de um ano, no mesmo teatro, França, com voz firme, doce e aveludada, transformou seu Michonnet, personagem secundário, no grande destaque de Adriana Lecouvreur. Agora, no novo papel, a voz aveludada deu lugar ao tom forte, às vezes áspero, sarcástico, de Ginni Schicchi. Desse modo, França demonstrou que além de cantar e interpretar bem, também tem a habilidade de moldar o colorido de sua voz ao personagem. A produção, tradicional, é bem italiana e o figurino deixa claro o contraste entre a família tradicional, formal, pesada, e o camponês Schicchi.

Paralelamente a Gianni Schicchi, mas não nos mesmos dias, o São Pedro está apresentando outra ópera cômica, porém bem diferente tanto na forma quanto na história. Trata-se de Il Noce di Benevento, ópera de câmara do compositor italiano Giuseppe Balducci (1796-1845), cujo título se refere à nogueira da cidade de Benevento, segundo a lenda um local de bruxas. A obra foi compostas para dois pianos, sendo um a quatro mãos, e seis vozes femininas, das quais uma representa um personagem masculino, Alberto. Aqui o São Pedro tinha um trunfo e o usou muito bem: o sopranista Bruno de Sá. Membro da academia — como, aliás, todo o elenco –, Bruno de Sá já havia merecido a atenção do público, recentemente, no concerto de abertura do Concurso Maria Callas.

Il Noce di Benevento S Pedro
Il Noce di Benevento, em cartaz no Theatro São Pedro.

Embora de forma mais ingênua, a ópera também trata de um golpe visando ascensão social. Giulia, uma viúva, com a cumplicidade de sua tia, quer se tornar baronesa. Para isso, tenta convencer o rico e nobre Alberto a se casar com ela e não com Clodina. Aproveita-se, para tal, da ingenuidade e crendices de Clodina e sua mãe e de intrigas: tenta convencer Alberto de que Clodina está envolvida em traição e bruxaria. Do lado de Alberto, o relacionamento com Clodina não era aprovado por seu pai, que sonhava com uma nobre noiva para o filho. No fim o plano é descoberto, tudo se resolve e todos se ajeitam socialmente. Na música, ecos de Mozart podem ser identificados.

Também com direção musical de André dos Santos e cênica de Davide Garattini Raimondi, Il Noce di Benevento mostrou como é possível fazer um belo espetáculo com pouco cenário, desde que de bom gosto, inteligente e com atores bem dirigidos. A ópera com árias cantadas e diálogos falados, como era típico na época em que foi escrita. A direção optou por traduzir os diálogos para o português, o que funcionou bem, não quebrou a fluência dramática. Porém, falar nem sempre é fácil para cantores e é aí que está, em muitos momentos, o ponto fraco da apresentação. Como falar com boa dicção, projetando a voz falada (afinal, não é só a cantada que precisa ser projetada!), sem perder a naturalidade? Será que em italiano, no mesmo idioma em que cantaram, não teriam cuidado melhor da dicção?

Com Gianni Schicchi e Il Noce di Benevento, com produções de baixo custo mas boa qualidade, bem tratadas, musical e dramaticamente fluentes, o São Pedro nos apresenta o resultado de anos de dedicado trabalho de formação de elenco e músicos. Só nos resta torcer para que esse trabalho tenha continuidade e, como disse Rinuccio: Viva la gente nuova!

Apoie a continuidade do belo trabalho que tem sido realizado pela direção do Theatro São Pedro. Apoie a continuidade da ópera em São Paulo. Leia a nossa carta à OS Santa Marcelina Cultura, que a partir de 01 de maio passa a ser a gestora do teatro, e, caso esteja de acordo, junte-se a nós, assino o abaixo-assinado.

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Gianni Schicchi, de Giacomo Puccini

21 e 26 de abril, às 20h;
30 de abril, às 17h

Elenco:

Gianni Schicchi | Johnny França | barítono e Vitor Mascarenhas | barítono*(dia 26)
Lauretta | Laís Assunção | soprano
Buoso Donati | André di Peroli | ator
A velha Zita | Catarina Taíra | mezzo-soprano
Rinuccio | Daniel Umbelino | tenor
Gherardo | Wesley Rocha | tenor
Nella | Raquel Paulin | soprano
Gherardino | Bruno de Sá | sopranista
Betto di Signa | Andrey Mira | baixo
Simone | Gustavo Lassen | baixo
Marco | Albert Andrade | barítono
La Ciesca | Deborah Burgarelli | mezzo-soprano
Maestro Spinelloccio | André Rabello | barítono
Pinellino | André Rabello | barítono
Guccio | Rodrigo Kenji | tenor
Amantio de Nicolau | Lucas Nogueira | barítono

Il Noce di Benevento, de Giuseppe Balducci

Projeto Academia de Ópera, Temporada, Temporada 2017
19 e 28 de abril, às 20h
23 de abril, às 17h

Elenco:
Geltrude | Cecilia Massa | mezzo-soprano
Clodina | Ana Beatriz Machado | soprano
Alberto | Bruno de Sá | sopranista
Margherita | Déborah Burgarelli | mezzo-soprano
Giulia | Marcela Rahal | mezzo-soprano
Laura | Amanda Souza | soprano

André Dos Santos – regência e 1º piano a quatro mãos
Alexsander Ribeiro de Lara – 2º piano a quatro mãos
Renan Branco – piano solo

Ficha técnica de ambas:
André Dos Santos – direção musical e regência
Davide Garattini Raimondi – concepção e direção cênica
Giorgia Massetani – cenografia
Mila Reily – figurino
Vinicius Andrade – desenho de luz

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