Uma nota na edição de 22 de fevereiro de 1854 do Jornal de Weimar ou, em bom alemão, Weimarische Zeitung, anunciava que no dia seguinte estrearia “Les Préludes — symphonische Dichtung” do compositor Franz Liszt (1811-1886). Nascia, assim, o termo “poema sinfônico” que, conforme explicou o maestro Victor Hugo Toro no último domingo, durante concerto da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, refere-se a um tipo de composição que busca transmitir sensações como as geradas pela leitura de uma determinada obra literária. Mais sofisticado do que, por exemplo, a imitação do cantar de um passarinho por um instrumento de sopro, o poema sinfônico vai além de efeitos meramente descritivos. Mas qual seria o limite da relação possível entre a abstração dos sons musicais e as letras? Inicialmente composto para ser uma abertura para o ciclo coral Os Quatro Elementos, a obra de Liszt foi remodelada (ou pelo menos sua primeira página, a do título) e rebatizada como “Les préludes (d’après Lamartine)“, referindo-se ao poema homônimo presente nas “Nouvelles Méditations Poétiques” de Alphonse de Lamartine. Do prefácio da partitura, tornou-se famosa a frase supostamente inspirada pela leitura de Lamartine (mas que não se encontra nas Nouvelles Méditations, não foi escrita pelo poeta): “O que é a nossa vida senão uma série de prelúdios para esse hino desconhecido cuja primeira e solene nota é entoada pela morte?

Após ouvir a estreia vienense de Os Prelúdios em 1857, o crítico Eduard Hanslick atacou enfaticamente não só a obra mas sobretudo a ideia de poema sinfônico. Autor do livro Do Belo Musical (1854), cujo tema principal é a natureza da linguagem musical, Hanslick defendia a ideia da música absoluta. Em resposta à pergunta “o que a música expressa?”, Hanslick não hesitou em responder: “nada; música é seu único significado”. Para ele, portanto, a ideia de um poema musical era uma contradição por si só. Carregada de história, polêmica e discussões filosóficas, não poderia ter havido escolha mais feliz que Os Prelúdios para iniciar o concerto intitulado “Poesia, Teatro e Música” e que girou em torno da relação entre a música e a literatura.

Em uma atitude ao mesmo tempo simpática e instrutiva, após Les Préludes o maestro Victor Hugo Toro, ao introduzir a Dança Macabra (1874) de Camille Saint-Saëns (1835-1921), convidou o público para uma festa. Advertiu, porém, o tipo de festa macabra a que se referia. Observou tratar-se de uma festa no cemitério e que tem, como anfitrião, ninguém menos que o diabo cuja voz, na obra, é o solo do violino. De fato, após as 12 badaladas do Ré na harpa, anunciando a meia noite, o violino toca um trítono, o intervalo que contém 6 semi-tons e, desse modo, separa a escala em duas partes iguais. Dissonante, desagradável, esse intervalo foi condenado na Idade Média e ficou conhecido como “diabolus in musica“. Diabolus, palavra latina que tem sua origem no grego, antônimo de símbolo (que denota coincidência, concordância), significa aquele que separa e evoluiu para o diabo com toda a carga negativa que hoje em dia lhe atribuímos. Outro aspecto apontado pelo maestro foi a uso do xilofone. Mais importante que o fato de o instrumento representar o bater de ossos durante a dança das caveiras é o de que foi com essa peça que o instrumento passou a ser utilizado no repertório sinfônico.

Embora essa obra também seja chamada de poema sinfônico, sua relação com o texto no qual se baseia é bem diferente de Os Prelúdios. Inspirada no poema Igualdade-Fraternidade, parte das Horas Sombrias de Henri Cazalis, a Dança Macabra busca utilizar sons da orquestra para descrever cenas do poema que, aliás, fez parte do programa da estreia. “À meia noite a morte toca uma dança, / Zig e zig e zag, com seu violino“, diz o poema. Na orquestra, os 12 Rés na harpa e a melodia “diabólica” no violino. A dança chega ao fim quando, segundo o poema, de repente todos saem, fogem, ao ouvir o galo anunciando a aurora. Em Saint-Saëns, é o oboé que transmite o canto do galo e o fim da festa.

A terceira forma de diálogo entre música e poesia — e aqui também entra o teatro — chegou, logo após o intervalo, através de uma seleção de trechos de Peer Gynt, música de Edvard Greig (1843-1907) para o teatro em versos de Henrik Ibsen (1828-1906). Quando escreveu Peer Gynt, publicado em 1867, Ibsen não tinha a intensão de levá-lo ao palco. Poucos anos depois, porém, o escritor mudou de ideia.  Em 23 de janeiro de 1874, Ibsen escreveu para Grieg contando que pretendia encenar a peça e o convidando para escrever a música. Dias depois informou o diretor Ludvig Josephson  sobre o “drama musical” que estava preparando.

Embora Ibsen tenha se referido a “drama musical”, o resultado não foi uma ópera — e não há indícios de que essa fosse a intenção do escritor. A música de Grieg, majoritariamente orquestral, foi utilizada como a trilha sonora da estreia, que ocorreu em 24 de fevereiro de 1876 no Christiania Theater, em Oslo, na Noruega.

Um sucesso, a peça foi um marco da cultura norueguesa: parceria entre o grande escritor e o grande compositor noruegueses do fim do século XIX, Peer Gynt é baseada na história de Per Gynt, figura do folclore norueguês. Abordando temas como o egoísmo, a culpa, o amor, a busca por si mesmo, a vida, o que se faz ou deixa de fazer, etc, Peer Gynt aproxima-se de uma fábula, mistura realismo e sonho muitas vezes até na mesma cena. Distingue-se, pois, do drama realista das demais obras de Ibsen.

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Cenas da estreia de Peer Gynt (1876).

Foi através de trechos bem escolhidos da música de Grieg que a OSMC nos levou a viajar pelas aventuras, mal feitos, dúvidas e sonhos de Peer Gynt e de sua fiel Solveig. Com uma proposta muito bem definida, a precisa narração — sem muitas palavras e todas muito bem pronunciadas pela repórter da EPTV Campinas Roberta Campos — nos situava na história e comentava a relação entre esta e a música que ouviríamos. Foi assim que passamos pelo sombrio lamento de Ingrid; pela delicada morte de Aase, a mãe de Peer, onde o triste mas esperançoso movimento ascendente das cordas foi interpretado com sensibilidade e poesia pela orquestra; pelo belo e famoso Amanhecer, tantas vezes utilizado no cinema; pela vigorosa dança árabe de Anitra. No final, o soprano Taís Bandeira deu voz, de forma bastante convincente, à discreta, paciente e determinada Solveig. Para harmonizar mais o conjunto, talvez o microfone utilizado pela narradora pudesse estar um pouco mais baixo. Desse modo, seria menor o contraste entre a narração microfonada e a delicadeza do som acústico da orquestra e, sobretudo, do canto de Solveig. 

As três obras escolhidas pela OSMC têm algo em comum além da motivação literária: as três são da mesma época — segunda metade do século XIX, justamente a época em que Hanslik tratou do assunto — e de compositores românticos. Tratam-se, porém, de compositores de diferentes nacionalidades e com diferentes motivações literárias e diferentes formas de tentar transmitir através de música essas ideias literárias. Desse modo, o programa combinou peças que soam bem em conjunto mas com estilos bastante diversos. Foi, portanto, uma rica oportunidade de comparar diferentes formas de interação entre música e literatura e, sobretudo, de refletir sobre a possibilidade do diálogo entre essas duas formas de arte cujas linguagens são tão inconciliáveis.

Com uma sonoridade que foi ganhando brilho ao longo do concerto e atingiu seu ponto alto em Peer Gynt, a OSMC não decepcionou o público que ocupou boa parte das cadeiras do Teatro Castro Mendes na manhã do último domingo. Em um teatro nada aconchegante, que não possui nem um café, localizado fora do centro da cidade, sem nada no entorno além de uma praça deserta e comércio fechado (até a padaria próxima parece não funcionar no horário do concerto), que não vende ingressos pela internet e nem aceita cartões de crédito ou débito no ato da compra, as pessoas que para lá se deslocam o fazem mesmo para ouvir música, para prestigiar a orquestra. 

O curto e preciso comentário do maestro entre as duas peças da primeira parte, com conteúdo e sem rodeios, é um sinal de que está havendo uma preocupação em aproximar o público das obras apresentadas. E, da forma como foi feito, é, sem dúvida, uma boa ideia. 

Esperamos que o público campineiro continue a olhar com carinho para sua orquestra e a prestigiar. Sem dúvida, vale a pena frequentar os concertos. 

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Taís Bandeira, VIctor Hugo Toro e Roberta Campos durante concerto da OSMC.

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