“Mais de uma vez, no Boulevard des Italiens, na ópera, em todos os shows onde é quase impossível conseguir um lugar, os parisienses terão visto, no camarote mais desejado do teatro, uma jovem de requintado comportamento. Eles terão admirado essa face casta, oval, seus lindos olhos negros sombreados por longos cílios, as mais puras sobrancelhas arqueadas, um nariz com a mais elegante e delicada curva, seu corpo aristocrático que a fazia passar por duquesa para os que não a conheciam. (…). Ela era uma duquesa, mas seu ducado consistia na Boemia… por um golpe do destino ela nasceu uma camponesa na Normandia.”
(Parte do obituário de Marie Duplessis escrito Théophile Gautier e citado por René Weis em The Real Traviata: The Song of Marie Duplessis. Oxford Ed.)
Alphonsine Plessis (1824-1847), ou, como era conhecida, Marie Duplessis, podia não ser nenhuma duquesa, mas se imortalizou. Sob o nome de Violetta Valéry, a heroína de La Traviata, de Verdi, tornou-se muito mais conhecida que qualquer nobre dama de seu tempo.

Em 6 de março de 1853 — apenas 6 anos após a morte de Duplessis –, no teatro La Fenice, em Veneza, Giuseppe Verdi estreava sua ópera La Traviata. Quatro anos mais tarde, em 25 de abril de 1857, essa nova ópera chegava a Buenos Aires para inaugurar o primeiro grande teatro de ópera da cidade: o Colón. Na verdade, o hoje chamado antigo Teatro Colón, que ficava na Praça de Maio (o atual data de 1908). Foi o mesmo título, agora um dos mais populares do repertório operístico, que o Colón escolheu para celebrar, no domingo 17 de setembro, os 160 anos de sua fundação. Para tanto, escalou para Violetta no elenco principal a badalada soprano albanesa Ermonela Jaho.
La Traviata, com libretto de Francesco Maria Piave, trata de Duplessis a partir da narrativa de Alexandre Dumas Filho em sua obra La Dame aux Camélias, publicada no ano seguinte à morte de célebre cortesã. No romance ela ganha o nome de Marguerite Gautier. Indulgente com Duplassis, de quem foi amante, Dumas não hesita em aponta o dedo para a sociedade francesa de sua época. Seu romance é recheado de frases e comentários que revelam a hipocrisia, a falsidade e o individualismo das pessoas que conviviam com Marguerite.
Segundo Dumas, Marguerite foi uma femme entretenue, uma mulher cuja vida luxuosa era mantida, sustentada por membros da nobreza que se tornavam seus amantes. Dumas, em seu romance, mostra que quando a doença se agravou, Marguerite foi abandonada por seus amantes e pela maioria de seus amigos e, ao mesmo tempo, as dívidas foram se acumulando. É com o leilão de seus pertences, após sua morte, para pagar os credores que tem início a estória de Dumas. Poucos dias antes da data marcada para que os possíveis compradores dessem os lances, a casa de Marguerite foi aberta para visitação a fim de que os interessados pudessem analisar os objetos disponíveis. Dumas narra como as senhoras da sociedade, que sempre evitaram a finada moradora, se aproveitaram da oportunidade para satisfazer sua mórbida e velada curiosidade quanto à vida da odiada cortesã. A oportunidade, segundo Dumas, também foi aproveitada por homens que nunca tiveram chance de dela se aproximar.
Dumas conta a história dessa cortesã que dependia de seus nobres admiradores, que vivia uma vida aparentemente livre e alegre, mas, em seu íntimo, as festas davam lugar à angústia de saber que seus patrocinadores não eram seus amantes por ela, por amor a ela, mas por amor a si mesmos. Realista, tinha plena consciência de que sua vizinha e fiel confidente, com quem que encontrava diariamente, tinha também seus interesses. A isso tudo se somava uma saúde frágil de alguém cuja tuberculose foi a única herança deixada pela mãe.
Foi por essa jovem aparentemente forte e bem resolvida, mas física e emocionalmente debilitada, que se apaixonou o jovem, nada bem resolvido emocional ou financeiramente, Armand Duval — nome que em Dumas ganha o personagem que Verdi e Piave viriam a chamar de Alfredo Germont. Em princípio, Marguerite tinha o domínio da situação e até chegou a estranhar o respeito que Armand manifestava por ela, bem como a preocupação com sua saúdo. Afinal de contas, ela era apenas uma cortesã. Porém, Marguerite não tardou a também se apaixonar por Armand e, por ele, abrir mão de seus amantes e de sua vida luxuosa. Foi a primeira vez que um homem jovem (e não um velho como a maioria de seus amantes) a amava e se preocupava com ela, com sua saúde. “Você me ama por mim e não por você, enquanto os outros sempre me amaram apenas por eles mesmos”, diz Marguerite a Armand.
Quando Marguerite julga que poderá virar a página e partir para uma vida modesta do lado de Armand, surge a figura do pai de seu amante, M. Duval — o Giorgio Germont de Verdi. Em princípio arredio, Duval, após conversar com Marguerite, deixa-se convencer pela sinceridade e boas intensões da ex-cortesã. Porém, explica ele, para a sociedade ela sempre será a cortesã, seu passado nunca será esquecido, ela e Armand nunca serão aceitos e a situação se tornará insustentável. Além disso, ele tem uma filha “pura como um anjo” — bem diferente da maculada Marguerite! — cuja família de seu amado noivo ameaça romper o noivado caso seu irmão, Armand, continue a viver com uma cortesã. Marguerite enxerga que seu sonho era impossível e aceita deixar Armand; consente em se sacrificar por seu amado e por sua pura irmã que teve a sorte de nascer em uma boa família.
Dumas, descrevendo Duval pai como justo, terno com Marguerite e sensato, praticamente o isente de culpa. Ele é apenas um homem medíocre, sem força e coragem para enfrentar a sociedade na qual vive. É essa cruel sociedade, que não permite a mobilidade social, que não dá uma segunda chance, que não precisa conhecer para julgar e condenar, que Dumas culpa pelo sacrifício e morte de Marguerite.
Vale observar que, em Dumas, Armand só fica conhecendo o real motivo da separação quando já é tarde demais. Antes disso, enquanto Marguerite se comporta com humildade e resignação, suportando com dor mas dignidade todas as ofensas que lhe são por ele dirigidas, Armand se comporta de forma grosseira, infantil, como um menino mimado. Na ópera de Verdi, isso tudo é resumido na cena em que Alfredo, diante de todos, atira dinheiro em Violetta.
Dumas transformou seu romance em peça de teatro e Giuseppe Verdi a assistiu em Paris, em 1852, juntamente com Giuseppina Strepponi. Verdi e Strepponi viviam juntos havia algum tempo e não eram casados. Como se isso não bastasse para entortar os olhares da sociedade, Streppini, antes de se unir a Verdi, não contava com boa reputação. É, portanto, perfeitamente possível intuir o que levou o compositor a se encantar com a obra a ponto de prontamente decidir transformá-la em ópera.
Como de costume, o Teatro Colón apresentou, no fim de semana de 16 e 17 de setembro, récitas com dois elencos distintos: um internacional, como parte do programa de assinaturas, e outro com cantores argentinos. No papel de Violetta, a albanesa Ermonela Jaho e a argentina Jaquelina Livieri ofereceram a seus respectivos públicos duas leituras absolutamente diferentes da heroína de Verdi. Logo na primeira aparição de Violetta, quando recebe Flora e outros amigos em sua casa, Livieri entra com voz leve, jovial, límpida. Jaho, por outro lado, com seu acentuado vibrato, tem uma entrada mais pesada, o que é agravado pela dificuldade de sua voz de se espalhar pelo Teatro Colón que, além de imenso, passou a ter sérios problemas de acústica após a recente reforma. Faceira, Violetta zomba do amor de Alfredo, o que, musicalmente, é traduzido por coloraturas. Nesse ponto a agilidade da voz experiente e bem educada de Jaho fez toda a diferença, sobretudo no ataque da nota aguda. Sozinha, Violetta se dá conta de que as palavras de amor de Alfredo continuam a ressoar em seu coração. No recitativo que Livieri fez de forma magistral, com belo fraseado, explorando os diferentes coloridos de sua voz e todas as nuances da partitura, foi possível captar a mais profunda felicidade de alguém que descobre que é possível “ser amada, amando”, que não é indigna de um verdadeiro amor. Ao recitativo segue a ária em que Violetta inicia se pergunta se não seria Alfredo aquele com quem sua alma sempre sonhou e termina ecoando as palavras e a melodia que Alfredo lhe cantara. Enquanto Jaho esbanja seus belos agudos em pianíssimo e, com seu vibrato, nos traz uma Violetta introspectiva, a da melodiosa Livieri, que utiliza com bom gosto os portamenti e explora muito bem a dinâmica da partitura, é apaixonada, intensa. Mas é tudo uma loucura, conclui a personagem, como que acordando de um sonho. Na cabaletta que se segue, uma valsa nervosa, em que pulsam tanto a alegria efêmera dos bailes quanto a respiração ofegante de uma Violetta agora irremediavelmente apaixonada, a experiente Jaho tem pleno controle sobre o seu diafragma e nos oferece as coloraturas com prefeição, mas é Livieri que nos contagia e nos apresenta o tumulto da alma de Violetta. Tornou-se tradição um salto para o Mi bemol no agudo bem no fim da cabaletta, quando a soprano fica repetindo “il mio pensier”. Nenhuma das duas o fez. Faz falta o agudo? Se fizesse, Verdi o teria escrito na partitura.
Quando, no segundo ato, ao confrontar-se com Germont, Livieri, mais uma vez com o uso moderado de portamenti, aproveita-se da dinâmica adotada pela orquestra e, urgente, com rápidos crescendos e diminuendos, transmite toda a angústia de quem pressente a ameaça que se aproxima e afirma a Germont, suplicante, que ele não imagina o amor que ela tem por Alfredo. Jaho sofre de forma mais introspectiva, com seu vibrato e seus pianíssimos, valorizando a fragilidade física de Violetta. Quando Violetta aceita enfim o sacrifício, o “Ah! Dite ala giovine” a angústia de Livieri dá lugar a um sofrido lamento bastante rico do ponto de vista da dinâmica.
Quando Alfredo chega e vê que Violetta está angustiada e escrevendo, ela se despede dele com a súplica “Amami, Alfredo”. Jaho iniciou seu canto de uma forma um tanto solene, pesada. Já a súplica de Livieri foi real e pungente, muito bem executada.
No terceiro ato, Violetta está morrendo. Aqui precisamos atender à vontade de Verdi e fazer uma advertência a Jaquelina Levieri: conforme registrado em suas correspondências, Verdi sempre rejeitou quaisquer efeitos não musicais — tais como tosses, gargalhadas, soluços… — em suas óperas. Pois mesmo assim a rebelde soprano resolveu se pôr a tossir durante a introdução, quebrando o belo clima criado pela orquestra. Podia ter poupado a voz e deixado que a música, como desejava Verdi e fez Ermonela Jaho, transmitisse a triste e frágil situação de Violetta. Terminam por aqui as críticas a Livieri. Cantora inteligente, quer concordemos ou não com a sua interpretação, ela moldou de forma coerente e competente os sentimentos dessa Violetta sofredora. Desde o momento em que Violetta lê a carta de Giorgio Germont, foi possível identificar que Livieri optou por uma Violetta desesperada, quase revoltada com uma situação para a qual ela sabia que não haveria mais conserto: “È tardi!”. Em seu envolvente “Addio del passato” foi possível observar o crescente desespero, a crescente revolta. Tudo isso num belo crescendo coordenado com a orquestra e ofegando com a música, quase uma marcha fúnebre.
Magnus Tessing Schneider, em seu ótimo artigo The Violettas of Patti, Muzio and Callas: Style, Interpretation and the Question of Legacy (Themes in Theatre, January 1, 2013), observa que segundo a soprano Luisa Tetrazzini (1871-1941), “o último ato de La Traviata requer o uso da ‘voz branca’ uma coloração vocal atingida pelo emprego de uma ressonância de cabeça sozinha (…). No último ato de La Traviata, a voz branca deve sugerir ‘total exaustão física e a aproximação da morte’”. Foi essa opção de Ermonela Jaho.
Conforme já observamos, as dimensões e condições acústicas do Teatro Colón não foram muito favoráveis à projeção da voz de Jaho. Além disso, seu excessivo vibrato também causou estranheza. É, contudo, interessante lembrar que, ao que tudo indica, Maria Spezia-Aldighieri, a soprano que interpretou La Traviata em 1854, quando a ópera se tornou um sucesso, tinha acentuado vibrato (https://www.york.ac.uk/music/conferences/nema/bethell/#chapter3). Portanto, se hoje pode nos incomodar, o forte vibrato seduziu a plateia 160 anos atrás.
Jaquelina Livieri, por outro lado, não teve dificuldade de projetar sua voz no Colón. Talvez por isso sua interpretação apaixonada, antenada com as nuances que o excelente maestro Evelino Pidò imprimia à orquestra, foi mais sedutora e contagiou a plateia. Com bom legato, ótimo desempenho nos recitativos, boa coloraturas e um interessante fraseado bem trabalhado, que combina a dinâmica da música com o peso de cada palavra do texto, demonstrou que está evoluindo muito bem no bel canto. Como justa recompensa, foi ovacionada pelo público que, no dia 16 de setembro, lotou o Teatro Colón.
O célebre tenor Giuseppe Di Stefano dizia que em La Traviata o tenor podia cantar de costas, que todos só olham para Violetta. De fato, trata-se de uma ópera na qual a soprano impera. Justamente por isso focamos a nossa análise nas duas Violettas. Porém, vale mencionar os Alfredos: o argentino Darío Schmunck e, no elenco principal, o albanês Samir Pirgu, pupilo de Luciano Pavarotti e Plácido Domingo. Mais em forma, a voz de Pirgu fluiu com maior volume e ele foi, cenicamente, mais envolvente. Porém, tecnicamente Schmunck se mostrou mais regular e sua voz, mais homogênea. Com problemas em sua técnica, Pirgu frequentemente emitia uma voz extremamente anasalada. Além disso seus agudos, em grande parte, eram enviados lá para trás e, praticamente, engolidos.
No caso dos dois barítonos que interpretaram Giorgio Germont a situação é muito bem definida. Ambos argentinos e ambos têm boa carreira internacional, sobretudo na Itália. Leonardo López Linares, com sua voz pesada e fraca atuação cênica, cantou com o elenco argentino. Já o ótimo Fabián Veloz, com boa desenvoltura cênica e pleno domínio de sua voz, soube dar as nuances de um Germont que começa arredio e evolui para alguém que consegue convencer e seduzir Violetta a ponto de ela lhe pedir: “Qual figlia m’abbracciate”.
A verdadeira estrela de ambas as récitas foi alguém que realmente ficou de costas: o renomado maestro Evelino Pidò. Especialista em ópera, entendido no assunto, Pidò deu vida à obra. Dominando orquestra, coro, cantando junto, interagindo com os solistas, não permitiu que o espetáculo caísse, em nenhum momento, na monotonia, no automático. Um verdadeiro maestro de ópera!
A produção apresentada no Colón, ao contrário do que havia sido originalmente anunciada, foi a que Franco Zeffirelli montou em abril de 2007 no Teatro dell’Opera di Roma. Funcional, a estrutura de base, com alguns degraus, se manteve constante em toda a récita, evitando complexas mudanças de cenário. Mas nem por isso foi monótona. Ao contrário. Envolvente e de bom gosto, dialoga, na segunda cena do segundo ato, com a estreia de La Traviata. Com toda a grandiosidade característica do diretor, a festa na qual Alfredo e Violetta se reencontram é transportada para o carnaval de Veneza. Uma bela resposta à sociedade que Verdi quis desafiar e, provavelmente entendendo o recado e se reconhecendo no espelho, rejeitou, de primeiro momento, essa obra prima hoje tão amada.