Um marco zero. Comparável, para a música, ao nascimento de Cristo: um evento que divide o tempo em um antes e um depois. Foi assim que, em conversa com o jornalista Irineu Franco Perpetuo no Momento Musical Especial de 13 de novembro, o maestro argentino Leonardo García Alarcón definiu a ópera L’Orfeo, de Claudio Monteverdi (1567-1643), que iria interpretar em seguida, em versão semi encenada, à frente da Capella Mediteranea e do Coro de Câmara de Namur, como parte da temporada 2017 da Cultura Artística. Programa oportuno neste ano em que se comemoram os 450 anos do nascimento de tão importante compositor. Segundo o maestro, durante os quase trezentos anos que separaram L’Orfeo das óperas de Puccini, com todas as modificações que a ópera foi sofrendo ao longo da história, não houve uma ruptura da magnitude da ocorrida em Mântua, no dia 24 de fevereiro de 1607, quando Monteverdi estreou sua ópera.

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O maestro Leonardo García Alarcón antes do concerto, no Momento Musical.

Inteligente, ao tratar de L’Orfeo o maestro Alarcón não fala em primeira ópera, em nascimento da ópera, como alguns insistem em definir. Também não atribui o marco para as que foram, de fato, as primeiras óperas. Foi a partir da genialidade de Monteverdi que tudo mudou, que a ópera atingiu sua forma.

O mais interessante desse marco é que seu ineditismo não está no tema, o mito de Orfeu, e nem no fato de ser uma obra cantada, uma ópera. Jacopo Peri e Giulio Caccini já haviam composto, em 1600 e 1602, respectivamente, suas óperas Euridice, a partir do mesmo libreto de Ottavio Rinuccini. E o libreto tratava justamente do mito de Orfeu e Eurídice. O que torna, então, o Orfeo de Monteverdi tão especial? Tentemos descobrir à luz da bela interpretação oferecida por Alarcón e pelos grupos que fundou.

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Claudio Monteverdi cerca de 10 anos antes de compor L’Orfeo.

Antes, porém, é conveniente investigarmos um pouco a respeito desse Orfeu. Afinal de contas, já citamos três óperas sobre o tema, e isso em um intervalo de sete anos. Em seu ótimo livro “The Birth of Opera”, F. W. Sternfeld faz um levantamento de 20 títulos sobre o mito de Orfeu, segundo ele, dentre “os itens mais óbvios, coletados em trabalhos de referência”, levados ao palco entre 1599 e 1698. Ele observa que desses 20, 8 foram apresentados entre 1599 e 1619.

Orfeu.

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Cópia romana de relevo grego: uma das mais antigas referência que temos de Orfeu tentando resgatar Eurídice do Hades.

“Famoso Orfeu”, proclama um fragmento atribuído a Íbico, poeta grego do século VI a.C.. Isso é tudo o que restou da mais antiga referência que se tem sobre Orfeu, mas é o suficiente para nos informar que, no século VI a.C., tratava-se de um personagem popular. Em outro fragmento da mesma época, Simônides de Céos nos dá uma pista de que talvez a canção tenha sido o atributo que tornou Orfeu tão famoso: “Sobre a sua cabeça inumeráveis pássaros faziam ninho, e os peixes saltavam da água azul em direção à sua bela canção”. Em uma breve citação, Ésquilo, em Agamenon (séc. V a.C.), confirma os dons de Orfeu: “subjugava os seres todos com a sedução de sua voz irresistível”.

Ainda no século V a.C., Eurípides, em Alceste, nos fornece mais algumas informações sobre Orfeu. Por amor, Alceste entrega-se à morte no lugar de Admeto, seu esposo. Admeto, lamentando a morte de Alceste, exclama que se “dispusesse da voz e da inspiração de Orfeu” poderia ir resgatar Alceste da região dos mortos. Ele não diz, em momento algum, que Orfeu tenha feito isso, mas apenas que a voz e a inspiração de Orfeu, sedutoras, abririam o caminho. Algumas décadas depois, porém, Platão nos dá outra versão. Em O Banquete, Fedro afirma: “A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava (…) e não ousava por seu amor morrer como Alceste, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi realmente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres”. Alceste teve sua prova de amor recompensada: Admeto não tinha meios de ir resgatá-la, mas os deuses restituíram-lhe a vida. Orfeu, porém, segundo Platão, tentou resgatar sua esposa do Hades e, como não estava disposto a morrer por ela, foi enganado e não obteve sucesso. Da narrativa de Platão também ficamos sabendo que a morte de Orfeu se deu pelas mulheres.

O nome da esposa de Orfeu, Eurídice, aparece pela primeira vez em fragmentos de um certo Paléfato, datados do fim do século IV a.C.. No século III a.C., um fragmento de Fanocles narra que Orfeu é morto pelas mulheres, pelas bacantes, por amar rapazes. Elas atiram sua lira nas águas, que a levam até a ilha de Lesbos onde, desde então, música e poesia passaram a reinar. As mulheres tracianas foram punidas por seu crime.

No entanto, as narrativas – e não meras referências ou fragmentos – mais antigas de que dispomos sobre Orfeu datam do século I a.C., são as de Diodoro da Sicília, Virgílio e Ovídio. Tratam-se, portanto, de textos do período pós helenista, contemporâneos à formação do Império Romano. Segundo a Biblioteca Histórica de Diodoro da Sicília, Orfeu “foi o filho de Éagro, um traciano de nascimento, e em cultura e composição de música e poesia ele superava de longe todos os homens dos quais temos registro (…). E sua fama cresceu a tal ponto que os homens acreditavam que com sua música ele enfeitiçava os animais selvagens e as árvores. (…) tornou-se o maior homem dentre os gregos, tanto por seu conhecimento dos deuses e seus ritos, quanto por seus poemas e canções.  Ele também tomou parte na expedição dos Argonautas, e por causa do amor que tinha por sua esposa, ousou a incrível façanha de descer ao Hades, onde fascinou Perséfones com sua canção melodiosa e persuadiu-a a ajuda-lo em seu desejo e permitir que resgatasse do Hades sua esposa morta (…)”.

No livro IV das Geórgicas, de Virgílio, o pastor Aristeu consulta o deus Proteu para saber por que perdera suas colmeias. O deus explica que ele estava sendo castigado porque, enquanto fugia dele, a esposa de Orfeu pisou em uma serpente venenosa que estava escondida na vegetação e morreu. Conta, então, a saga de Orfeu que, para resgatar a esposa, penetrou nas profundezas, onde ficam os mortos, e consegui convencer as criaturas das sombras.

“E já retornando, havia Orfeu superado todos os perigos, e a resgatada Eurídice vinha para os ares superiores seguindo atrás (pois Prosérpina havia estabelecido tal condição), quando uma súbita insensatez tomou conta do incauto amante (…)! Parou e, no momento em que atingiam a luz, esquecido de tudo, ah! vencido pela paixão, volveu o olhar para a sua Eurídice. Nesse instante todo o esforço foi perdido e o pacto estabelecido com o cruel tirano rompeu-se (…). Ela, então: “(…) agora, adeus: ah! já não mais tua, estendendo-te mãos impotentes, sou levada envolta pela imensa noite”.  (…) enquanto ele inutilmente se empenha em apoderar-se da sombra querendo dizer tantas coisas, ela não mais o vê; e nem o barqueiro do Orco permite mais atravessar o pântano que os separa. (…)

Durante sete meses inteiros (…) ele chorou (…). Nenhuma paixão, nenhum himeneu comoveram seu espírito. (…) As mulheres dos Cícones, sentindo-se desprezadas por tal devoção, durante as sagradas cerimônias e as orgias noturnas a Baco dilaceraram o jovem e espalharam seus membros pela vasta planície. Mesmo então, enquanto o Ebro Eagro, arrastando para o meio do turbilhão, levava sua cabeça arrancada do cândido pescoço, dela própria sua língua gelada, esvaindo-se a vida, chamava Eurídice: Ah! infeliz Eurídice! Eurídice, repetiam as margens ao longo de todo o rio.”

 

Foi Ovídeo (43 a.C. – 18 d.C.), com sua narrativa não tão objetiva quanto a de Virgílio, com sua dramaticidade e seus lamentos, quem mais inspirou os libretistas do início do século XVII. Nos versos 1 a 85 do livro X de suas Metamorfoses ele narra a história de Orfeu.

“(…) o Himeneu (…) é chamado inutilmente pela voz de Orfeu. (…) A tocha aguda que ele conservou esteve sempre com funesta fumaça e, até mesmo com movimentos, não obteve nenhuma chama. O desfecho é mais grave do que o auspício: com efeito, enquanto a esposa anda por entre as plantas acompanhada de uma nova turba de ninfas, morre com a picada de uma serpente recebida no tornozelo. O poeta da Trácia lamentou para os céus superiores a fim de que descesse às sombras, ousou entrar nos infernos e, por entre populações inconstantes e espectros já sepultados, aproximou-se de Perséfone e do senhor das sombras, que detém os reinos infernais. Tocadas as cordas, assim diz os versos: ‘Ó deuses do mundo posto sob a terra, no qual descemos todos nós, criaturas mortais; cessados os rodeios da palavra enganadora, se é lícito que vós permitis falar coisas verdadeiras, não desci para ver o tenebroso Tártaro, nem para vencer as três goelas cobertas de serpentes do monstro de Medusa: a causa da viagem é a minha esposa, tendo pisado numa víbora, o veneno nela se espalhou e tirou-lhe os anos crescentes. Desejei poder suportar, não negarei que eu tenha tentado: o Amor venceu. Este é um deus bem conhecido na região superior, se aqui o é, não sei, contudo penso que seja. Se a fama do antigo rapto não mentiu, o Amor também vos uniu. Por entre estes lugares plenos de terror, por entre este enorme caos e a sombra de vasto reino, suplico, refazei a vida prematura de Eurídice. Devemos todas as coisas a vós, e tendo vivido um pouco, mais lentamente ou mais rapidamente, nos impelimos para uma única sede. Para aqui nos dirigimos todos, esta é a última casa, e vós tendes vastíssimo domínio sobre o gênero humano. Ela também, quando já madura tiver percorrido anos suficientes, estará ao vosso poder: pedimos, por favor, aquilo que é necessário; porque se os fados me negam a graça em favor da esposa, estou decidido a não querer regressar, comprazei vós com a morte dos dois’. As almas exangues choravam por aquele que, tocando as cordas, dizia tais palavras. (…). Nem a esposa real ousa negar àquele que suplica, nem quem governa as profundezas. Chamam Eurídice. (…). O herói de Ródope a recebe com a condição de que não volte seus olhos para trás até que tenha atravessado os vales do Averno. (…). Não longe, aproximaram-se da entrada do solo elevado: neste momento, temendo que ela o abandonasse e ávido de vê-la, o amante voltou os olhos, e imediatamente ela foi reconduzida, e estendendo os braços para ser agarrada e esforçando-se para agarrar, a infeliz nada toma senão os ares que se dissipam. E agora morta pela segunda vez nada murmura contra seu esposo (o que, de fato, haveria de se queixar, senão o fato de ser amada?). (…). O barqueiro contivera Orfeu que, em vão, suplicava e desejava atravessar pela segunda vez: contudo, ele permaneceu de luto e sem o dom de Ceres por sete dias na costa. O cuidado e a dor do coração e as lágrimas foram o seu sustento. Lamentou que os deuses do Érebo eram cruéis, refugia-se no alto Ródope e no monte Hemo batido pelos ventos do norte. (…) Orfeu recusara todo encanto feminino, ou porque tristemente lhe sucedera ou porque concedera fidelidade, contudo o desejo de unir-se ao vate se apossava de muitas; muitas, repelidas, sofreram. Ele ainda foi, para os povos da Trácia, conselheiro em levar o amor aos jovens rapazes e em colher, antes da juventude, as primeiras flores e a breve primavera da vida.”

No Livro XI, Ovídeo conta como Orfeu morreu. As bacantes da Trácia, iradas com a decisão de Orfeu, o encontram enquanto ele cantava. “Lá está quem tudo o que é mulher despreza e odeia”, disse uma delas. Em princípio, as tentativas de atingir Orfeu são malsucedidas: o som de sua lira impede que qualquer coisa o atinja, lhe fazendo mal. Porém, elas fazem tamanho barulho que conseguem encobrir o som de sua música. Finalmente, utilizando todas as armas possíveis, atirando nele tudo o que está em seu alcance, conseguem matar Orfeu. As aves, os animais, as árvores, as selvas, os rios… choram a morte do músico. “Jazem dispersos os sagrados membros aqui e ali, sem honra”. A cabeça e a lira, “(coisa espantosa!) quando caíram na correnteza, deram sons queixosos (…) a que as margens com eco responderam”. Sua cabeça chega a Lesbos e Apolo a transforma em pedra. No mesmo instante “desce a sombra do Vate ao negro reino e reconhece os lugares que já vira. Ao buscar (…) a habitação dos bons encontra a esposa, e lança-lhe, saudoso, os ternos braços. Ficam desde então inseparáveis (…)”. Orfeu já não teme tornar a perder Eurídice. As bacantes, por sua vez, são punidas.

Segundo Sternfeld, as Metamorfoses de Ovídeo reúnem três características que tornam a obra bastante atraente do ponto de vista dramático: habilidade narrativa, erotismo sensual e o elemento miraculoso, mágico. Sternfeld, porém, é taxativo ao afirmar: “O atrativo principal dos mitos das Metamorfoses para os libretistas (…) foram os lamentos tão eficientemente posicionados no enredo”.

É bom que se observe, contudo, que embora Ovídeo tenha sido o poeta preferido dos libretistas das primeiras óperas, não o foi sem que se adequasse ao pensamento cristão e neoplatônico da época. Nesse contexto, Orfeu funciona como uma alegoria para a figura de Cristo: o Orfeu que desce ao Hades para resgatar a esposa representa, na versão dita “moralizada”, o Cristo que vem à Terra para salvar a humanidade. Isso ainda mais em um contexto pastoral, o que remete ao Cristo “bom pastor”. Também em acordo com as teorias neoplatônicas, no mito de Orfeu é marcante a oposição entre o mundo das sombras (das projeções) e o da luz. Há ainda (após a segunda morte de Eurídice) a negação do amor carnal e um desprezo pelas mulheres, certa misoginia que, na época, era muito bem-vinda.

Orfeu na ópera.

A primeira obra longa encenada a narrar a história de Orfeu foi La Favola di Orfeo, de Poliziano. O Orfeo de Poliziano não pode ser considerado uma ópera, mas uma peça de teatro com tema pastoral e algumas partes cantadas. Foi, porém, um precursor das óperas, em especial das óperas sobre esse tema. Além disso, segundo Sternfeld (já citado), foi o primeiro drama secular em linguagem vernacular. Na ópera, foi, conforme já mencionado, Rinuccini o primeiro a escrever um libreto a respeito do mito de Orfeu e Eurídice, musicado tanto por Peri quanto por Caccini. Nessas obras, todo o enfoque está no texto, rimado, e a música é quase mera auxiliar na forma de recitar esse texto, sempre com um pequeno ornamento no fim de cada verso. Não há uma preocupação em se estabelecer um diálogo entre atores ou cantores. Em alguns momentos, por exemplo, o coro canta partes de Orfeu ou de algum pastor. Não há uma preocupação com a dramaticidade na composição da música ou na escolha dos instrumentos. Os instrumentos, aliás, em geral não eram especificados pelo compositor, mas ficavam a critério dos intérpretes.

Já Monteverdi, em seu L’Orfeo, faz uso da escrita idiomática, ou seja, da escrita específica para cada instrumento. Com orquestra enorme para os padrões da época – mais de 30 instrumentos –, as especificidades técnicas e as características do timbre de cada instrumento passam a ter importância, a fazer parte da narrativa. Além disso, a ópera não é um imenso recitativo, mas há números de dança, canzonettas e até um esboço de fuga. Em vez de rejeitar totalmente a polifonia, Monteverdi soube aproveitá-la, utilizá-la como aliada do drama. Sem monólogos extensos, com versos brancos (sem rima) em grande parte da obra e versos rimados apenas em alguns momentos, o libretto de Alessandro Striggio (1573-1630) permitiu a composição de uma música mais fluente.

Peri, em Florença, fazia parta da Camerata Fiorentina, um grupo que, incomodado com o excessivo uso da polifonia que praticamente impedia a compreensão de qualquer texto e se interessava pelo teatro grego, propôs a monofonia, o “recitar cantando”. Não se sabe até que ponto essas ideias em voga em Florença chegaram a Mântua e influenciaram Monteverdi. O que se sabe é que Vincenzo Gonzaga, o duque de Mântua, esteve em Florença, em 1600 quando a Euridice de Peri foi encenada. Não se sabe se Monteverdi fez parte da comitiva.

De qualquer forma, ao contrário do que se popularizou pensar, a ópera não foi inventada puramente como resultado de formulações teóricas da Camerata com a intensão de imitar o teatro grego, as tragédias gregas. Os temas das primeiras óperas – e L’Orfeo se inclui aqui – são pastorais, algo entre o drama e a comédia – a favola –, bem distante da tragédia grega. A poesia e a música são herdeiras dos madrigais, dos intermezzos. Ou seja, a ópera foi quase que uma evolução natural do que já havia na Itália renascentista, com alguma influência dos músicos e teóricos da Camerata. L’Orfeo: Fabola in Musica, assim é conhecida a ópera de Monteverdi.

 

L’Orfeo de Monteverdi.

Orfeo - Frontispiece_of_L'Orfeo

Logo chegaram ao palco, os metais da Cappella Mediterranea se posicionaram para a famosa Tocatta. Que – é sempre bom lembrar – não é uma abertura da ópera. A função da tocatta era acompanhar a entrada das autoridades, sobretudo do duque. Em geral, ela não era composta pelo compositor da obra a ser apresentada, mas improvisada pelos músicos. Aqui reside mais uma inovação de Monteverdi com seu L’Orfeo: ele compôs sua Tocatta especialmente para o evento e, inclusive, escolheu os instrumentos.

No Prólogo da ópera, a Música aparece, pessoalmente, para apresentar a saga de Orfeu. Logo nas primeiras notas do Ritornello já é possível perceber a opção de Alarcón por uma interpretação mais movimentada, mais vibrante, com os contrastes acentuado (inclusive em relação às mudanças de andamento) e o colorido dos instrumentos valorizado. Essa opção foi reforçada pela dramaticidade do canto – em alguns momentos, é bem verdade, um pouco excessiva, atrapalhando a compreensão do texto – da soprano Mariana Flores. Em vez de acompanhar o recitativo da Música com discretos acordes, Alacrón o faz com muita música e bastante liberdade, cativando o público logo nos primeiros compassos.

A Música se dirige a “ilustres heróis, nobre sangue de reis, dos quais a Fama narra a história, ainda que distante da verdade, pois suas façanhas são muito elevadas”. De forma extremamente respeitosa, de acordo com os padrões da época, assim Striggio saudava os membros da Accademia degli Invaghiti (Academia dos Enlevados), todos homens, nobres, para quem a ópera foi apresentada pela primeira vez, na então Sala dos Espelhos do Palácio Ducal de Mântua, onde ocorriam, com frequência, apresentações de música secular. Projetada por Bernardino Facciotto no século XVI, a sala desapareceu após modificações no palácio e suas ruínas foram encontradas em 1998. Segundo Paola Basutti em “Spaces for Music in the Late Renaissance Mantua”, capítulo quinto do livro “The Cambridge Companion on Monteverdi” e também no artigo “The ‘Sala Degli Specchi’ Uncovered: Monteverdi, the Gonzagas and the Palazzo Ducale, Mantua” (que pode ser acessado em http://elearning.unite.it/pluginfile.php/47503/mod_resource/content/1/PDF_SALA%20DEGLI%20SPECCHI.pdf e contém interessantes imagens), a sala tinha a forma de um trapézio um pouco distorcido e uma área de aproximadamente 150 m2 – pouco menos da metade das dimensões do palco da Sala São Paulo. Desse modo, o espaço que, na estreia, compreendia músicos, cantores e o público era a metade do espeço que, em São Paulo, foi ocupado apenas por aqueles que estavam se apresentando. O tamanho e, consequentemente, pequeno público da récita de estreia favorecem o intimismo e o maior envolvimento dos expectadores com a obra, mais que isso, a catarse, efeito que os teóricos da Camerata Fiorentina atribuíam ao teatro grego e tentavam reproduzir. Como observou o maestro Alarcón, o tamanho da sala interfere, também, na forma de interpretar a obra e, sobretudo, de cantar.

Nem acaba de soar o Prólogo, o Pastor já anuncia o dia feliz do casamento de Orfeu e introduz o Primeiro Ato. O coro (polifônico) invoca Himeneu, o deus do casamento, e pede que sua “tocha ardente seja como um sol nascente que (…) expulse para sempre os horrores e as sobras da tristeza e da dor”. Sabemos, contudo, graças a Ovídeo, que Himeneu não acendeu a tocha. Ao contrário, ela “esteve sempre com funesta fumaça e, até mesmo com movimentos, não obteve nenhuma chama”.

Celebrando o (aparentemente) feliz casamento de Orfeu e Eurídice, o delicioso coro Lasciate i monti chama as ninfas “graciosas e alegres” para que deixem os montes, as fontes, e venham danças nos prados. Uma dança na forma de alegre madrigal polifônico e, quase, uma fuga.

O pastor pede a Orfeu que alegre os campos e, com sua lira, cante uma canção ditada pelo Amor. Vem o belo recitativo de Orfeu, Rosa del ciel, no qual ele se dirige aos céus: “já viste amante mais feliz e afortunado que eu?”  e a Eurídice: “o auge da felicidade foi quando me deste a tua cândida mão”. Como observa Joachim Steinheuer no capítulo sétimo do livro “The Cambridge Companion to Monteverdi”, “o texto de ‘Rosa del ciel’ (…), com suas dezenove linhas de versi sciolti, sem ritmo, contrasta com os outros arranjos do ato, fortemente estróficos”. De fato, a felicidade contemplativa de Orfeu, seu profundo amor e sua gratidão, evidenciados nesse recitativo, contrastam fortemente com a alegria festiva, cheia de ritmo e danças das ninfas e pastores. Nesse momento, de forma magistral, a Capella Mediterranea sabe valorizar o acompanhamento instrumental, sem, contudo, tirar o protagonismo da bela interpretação de Valerio Contaldo (Orfeu).

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Valeiro Contaldo (de branco): Orfeu.

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O primeiro ato termina com um coro que comenta, resumidamente, os acontecimentos do ato. Esse é o padrão da conclusão de todos os atos.

Embora a ópera tenha nascido com a ideia do canto monódico e, mais que isso, do recitar cantando, os coros desse primeiro ato já deixam claro que a seconda prattica, nome com o qual Monteverdi se referia a seu modo de compor, não abolia totalmente o canto polifônico renascentista. Ao contrário, o utilizava como aliado. Segundo Sternfeld, mais que canto monofônico que é, literalmente, uma linha sem acompanhamento, “a essência do estilo operístico ou monódico reside na tensão entre a linha vocal e seu baixo”, ou seja, seu acompanhamento.

No segundo ato, com a deliciosa dança “Ecco pur ch’à voi retorno”, que Alarcón, Contaldo e a Capella Mediterranea fazem de forma contagiante, Orfeu está comemorando suas bodas. Alegremente, ele celebra, agora, junto com os pastores e com o canto ritmado que lhes é característico. Porém, tanta alegria é interrompida pela mensageira, Silvia gentile, a ninfa companheira de Eurídice. Na Sala São Paulo, um dos pontos altos da noite foi a entrada da Mensageira, Giuseppina Bridelli, com sua bela voz e canto pungente. “Ahi, caso acerbo” (funesto), canta a Mensageira para introduzir a trágica notícia que haveria de dar. Certamente ainda hoje o “Ahi” de Bridelli, com um belo e urgente crescendo seguido de um discreto e choroso diminuendo, ressoa nos ouvidos de quem a ouviu na noite de 13 de novembro.

É de grande riqueza a cena da mensageira. A primeira coisa a se observar é uma mudança harmônica notória no momento em que ela anuncia a morte de Eurídice. Tudo se torna mais escuro, triste. Orfeu responde Ohimè, mas nesse “Ai de mim”, musicalmente, ouve-se uma cadência, um fim. Era o fim de sua felicidade. A música que acompanha a narrativa da morte de Eurídice é quase descritiva. No momento em que Silvia conta que Eurídice pisou em uma serpente venenosa, há uma pausa – rápida, mas que no meio da narrativa parece infinita, é como um momento de silêncio em homenagem a Eurídice. Além da pausa, há uma ruptura harmônica. Ao narrar a tentativa das ninfas para reanima-la, a música se torna livre, agitada, apressada. Sim, Eurídice morreu, mas aí nasceu a ópera como conhecemos hoje.

Ofreu responde com um lamento, que é elemento essencial e constante na história da ópera. Seu lamento começa falando da morte e Eurídice e termina com um adeus à terra, ao céu e ao sol. Uma despedida que traduz, em palavras, o sensação de fim expressa, musicalmente, no Oihmè. Despedida (principalmente da vida), adeus, ai, ahime, ahi, ó, o choro, a dor, a morte… são todos elementos abundantes nos lamentos.

Orfeu decide ir resgatar Eurídice no Hades. Para isso, tenta convencer Caronte, o barqueiro que leva as almas, a transportá-lo para lá. A primeira coisa a se reparar é que não se trata, na verdade, do Hades grego, mas do Inferno da Divina Comédia, de Dante. A primeira pista disso é que a Esperança, que acompanhava Orfeu, se diz impedida de entrar, pois uma lei severa escrita nos umbrais a proíbe: “Lasciate ogni speranza à voi ch’entrate”. Uma frase de Dante. E ao longo da ópera há diversas.

Outro ponto interessante é o canto de Orfeu diante de Caronte (em São Paulo, o ótimo baixo Salvo Vitale), “Possente Spirto”. É uma prece, mas uma prece-lamento (algo bastante comum). Outra referência a Dante é que dividido em estrofes com três versos cada, a prece remete à forma da Divina Comédia. Ao contrário de todos os demais recitativos, suas três primeiras estrofes são absolutamente melismáticas, repletas de ornamentos. As interpretações divergem. Para alguns, Orfeu estava apenas sendo galante, tentando seduzir o barqueiro. Para outros, como Philippe Beaussant em Le Chant d’Orphée Selon Monteverdi, nesse momento se revela mais a natureza divina de Orfeu, um semi-deus. Desse modo, entre os mortais, com os pastores, Orfeu canta como um mortal; já no meio dos espíritos, se porta como um deus, como o filho de Apolo. De qualquer modo, Orfeu não consegue convencer Caronte, mas seu canto o fez adormecer. Portanto, não é por acaso que esse recitativo de Orfeu, que toma boa parte do terceiro ato, destoa de todos os outros e é o mais longo da ópera. Um dos méritos do libreto de Striggio, que possibilitou maior fluência e dramaticidade à obra, foi não utilizar longos e monótonos monólogos, prática comum dentre os seus antecessores. Aqui, Striggio coloca um texto longo, que adormece Caronte como os textos antigos adormeciam a plateia.

Antes de passar à interessante discussão sobre o fim da ópera, uma nota sobre a Prosepina de Anna Reinhold. Com sua bela, marcante voz, deu destaque à esposa de Plutão e, também, à Esperança. Não poderíamos deixar de mencionar sua marcante presença.

O fim da história já contamos acima: após perder Eurídice pela segunda vez, Orfeu passar a rejeitar todas as mulheres e as bacantes não o perdoam. E isso o que está no libreto original de Striggio (embora não fale em morte de Orfeu). Portanto, foi provavelmente assim que terminou a ópera no dia 24 de fevereiro de 1607. Porém, na partitura publicada em 1609, o fim é diferente – e a música para o fim original se perdeu. Na segunda versão do final, Apolo desce dos céus para resgatar Orfeu e leva-lo consigo, onde ele poderá contemplar a beleza de sua amada “no Sol e nas estrelas”. Trata-se, portanto, de um final feliz, um lieto fine. Muito mais apropriado a comemorações, ocasiões para as quais as óperas eram compostas. Foi o tipo de fim empregado no libreto de Rinuccini para Euridice: Orfeu consegue resgatar sua amada do Hades, não olha para trás, os dois saem de lá felizes. Porém, não se pode ter certeza de que agradar os convidados imperiais tenha sido a única razão de Monteverdi para mudar o fim, uma vez que toda a estrutura da região final foi modificada, inclusive o tamanho do coro que encerra a ópera, que era bastante pequeno.

Para se atingir o lieto fine, foi introduzida uma figura divina, mágica, até então estranha ao libreto e totalmente inesperada: Apolo. Essa é a descrição da figura do deus ex machina do drama antigo. No caso do enredo em questão, o deus ex machina até reforça o caráter alegórico do Orfeu-Cristo que, após descer para resgatar a sua amada (humanidade), volta para o Pai.

Foi também um lieto fine a conclusão da temporada 2017 da Cultura Artística. Com a apresentação de um grupo profissional e qualificado como a Capella Mediterranea, o Coro de Câmara de Namur e ótimos solistas sob a regência de Leonardo Garcia Alarcón, a Cultura Artística encerrou de forma brilhante sua temporada e, de quebra, resgatou do Hades o coração dos amantes de ópera de São Paulo.

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