Na última sexta-feira, 23 de fevereiro, os internautas amantes de ópera, já habituados a ver via streaming os títulos mais populares diretamente dos principais teatros do mundo, se depararam com uma experiência um pouco diferente: a estreia de um novo título, italiano e inédito. O palco dessa estreia foi o tradicional Teatro Carlo Felici, em Gênova, que sempre transmite seus espetáculos através do site http://www.streamingcarlofelice.com. Foi atendendo a uma encomenda do teatro que o compositor Marco Tutino e os libretistas Luca Rossi e Fabio Ceresa compuseram Miseria e Nobiltà. Livre adaptação da peça homônima que Eduardo Scarpetta publicou em 1887, a ópera transporta a cena para 1946, quando estava sendo realizado o referendo que viria a derrubar a monarquia italiana e a instalar a república. Popular, a peça já originou filmes e minisséries, sendo o mais famoso o de 1954, dirigida por Mario Mattòli e estrelada por Sophia Loren e Totò, o grande comediante italiano.
A trama coloca em confronto três tipos sociais: o plebeu pobre, o nobre e o burguês. Enquanto a mesa do plebeu faminto está vazia, as mesas do nobre e do burguês esbanjam sabores e fartura. Na ópera, Felice Sciosciammocca, um professor que foi abandonado pela mulher e perdeu o emprego por perseguição política, vive sozinho com o filho. Para iludir a criança, envia-lhe cartas, escritas por ele próprio, que diz serem da mãe que vive na América. Seu ex-aluno, o nobre Eugenio, filho de Ottavio, o Príncipe de Casador, o procura: ele e a bailarina Gemma estão apaixonados e querem se casar. Porém, o Príncipe, interessado em ter Gemma por amante e incapaz de crer que uma bailarina possa ser esposa digna, não está de acordo com o casamento. O problema é que Don Gaetano, pai de Gemma, um burguês, só autoriza o matrimônio se o Príncipe consentir. Eugenio pede a Felice que ele se passe pelo Príncipe e vá, com o ‘filho’, à casa de Don Gaetano.
A ópera foi anunciada como uma retomada da tradição da opera buffa. De fato, contendo uma crítica social e uma farsa, o enredo se preta a isso. Assim é no célebre filme em que Totò interpreta Felice. No filme, Felice também é pobre e foi abandonado pela primeira esposa, mas porque ela descobriu que ele a traía. Divide a casa em que mora não só com o filho, mas com a segunda esposa e outra família. Brigas, gritarias bem italianas e fome dão o tom da comédia. Enquanto os homens, sem sucesso, mas também sem muito empenho, saem para tentar ganhar algum dinheiro, as mulheres fazem o que podem para conseguir alguma comida. As mulheres são apresentadas como rígidas, grosseiras e histéricas enquanto que os homens, como Felice, procuram ter lábia, são mulherengos e um tanto corpo mole. Em bom português brasileiro, pode-se dizer que Felice tem malandragem. Na ópera, porém, esse mesmo protagonista é pintado como um professor culto, sério, honesto, que perdeu tudo mas não seus princípios. Pois bem, como transformar esse herói trágico em um cômico? Os autores o fazem da forma forçada: em alguns momentos, como no início do segundo ato, quando ele está se passando pelo nobre, apresenta um comportamento estranho – e não condizente com o personagem que nos foi apresentado.

No filme cada tipo social é caracterizado por um estereótipo: o nobre exige respeito e zela pela família, mas é moralmente degradado e infiel; o burguês é rico, mas burro e grosseiro; o plebeu pobre tem até alguma cultura (sabe escrever) e é uma vítima da sociedade, mas é, no fundo, malandro. Quando esse último tipo social perde seus defeitos e torna-se sério, deixa de ser cômico. A comédia em torno dele se torna inviável ou, pelo menos, inverossímil. É verdade que, nos dias de hoje, quando na maior parte dos casos comédia deixou de ser coisa séria e migrou para o simples entretenimento, brincar com o pobre, com aquele que não tem o que comer, pode não parecer de bom tom. Nesse caso, era preferível abrir mão da pretensão de fazer uma opera buffa e permitir que o drama fluísse naturalmente – o que não proibiria a ocorrência de alguns inevitáveis momentos de humor.
Enquanto peça e filme se passam em qualquer tempo durante a monarquia, a ópera de Titino se situa no ponto de transição entre monarquia e república, quando, no ano seguinte à morte de Mussolini, com o referendo de 2 de junho de 1946 tem fim o curtíssimo reinado (1 mês) de Umberto II. Essa feliz escolha ressalta o fato de que a situação social estava insustentável e alguma mudança era iminente e necessária. Porém, após mais de 70 anos de república, conhecendo a história que veio depois de 1946, seria demasiado artificial terminar a ópera comemorando, alegre e ingenuamente, a vitória da república e deixando no ar a impressão de que todos os problemas sócio-políticos seriam resolvidos e todos viveriam felizes para sempre. Em uma das últimas cenas, nobre e burguês fazem um acordo para que as coisas mudem continuando como estão. Uma boa ideia que contribui para que o enredo não tenha um sabor de coisa antiga que chegou a nós com décadas de atraso.

Quanto à música, agradável e fácil de se ouvir, foi mais séria no primeiro ato e leve na primeira parte do segundo – quando Felice se faz passar pelo pai de Eugenio. É notória a influência de Puccini e do cancioneiro napolitano. Embora a partitura tenha momentos muito interessantes, peca um pouco pela repetição e por certa inexpressividade ou falta de dramaticidade — e já que a ópera é buffa, também de senso de humor. Em relação à repetição, um exemplo marcante é quando, no primeiro ato, Peppiniello, filho de Felice, encontra Bettina. Ele não sabe que está diante de sua mãe e lhe mostra a suposta carta da mãe que vive na América. Ela canta a longa ária, estrófica, na qual lê a carta (essa cena pode ser vista no vídeo postado no Facebook do teatro). No segundo ato, mãe e filho se reencontram e, dessa vez, a verdade é revelada. A ária cantada pela mãe repete, desnecessariamente, a melodia da carta. Se já havia sido revelada a não autenticidade da carta, por que a tornar autêntica através música?
No que diz respeito à execução, foi bastante feliz a produção de Rosetta Cucchi, que soube transmitir o ambiente bem italiano e manteve a emblemática cena do filme em que espaguete é servido aos esfomeados. Musicalmente, só merece elogios o desempenho do jovem maestro Francesco Cilluffo à frente da Orquestra del Teatro Carlo Felice, do coro. Todo o elenco, aliás, saiu-se muito bem. Como Bettina, Valentina Mastrangelo soube marcar as nuances da personagem, que teve momentos extremamente melodiosos, como as árias acima comentadas, e outros mais duros. Também tiveram bom desempenho Francesca Sartorato como Peppiniello e sobretudo Martina Belli, com sua voz bela e aveludada, como Gemma. Dentre os homens, embora Fabrizio Paesano, Alessandro Luongo e Alfonso Antoniozzi tenham interpretado muito bem, respectivamente, Eugenio, Felice e Don Gaetano, o grande destaque ficou com o experiente baixo Andrea Concetti no papel do Príncipe, o único personagem que teve as suas características satíricas não só mantidas como até ressaltadas.
Apesar das observações acima, os eventuais pontos fracos da partitura ou do libreto não diminuem a importância do evento. É necessário que se componham novas óperas e não se pode esperar que sejam todas irrepreensíveis obras primas. Nem todas as obras com as quais já nos habituamos são obras primas livres de defeitos e, com raras e honrosas exceções, receberam críticas muito mais ácidas que esta após a estreia. Que outros teatros do mundo possam encenar Miseria e Nobiltà e que um numeroso público possa ver e pensar sobre essa nova ópera.
