“Trata-se de um muito peculiar entrelaçamento de épocas, destinadas, aliás, a se unirem com uma terceira, que é o período que o leitor um dia talvez aproveite para tomar conhecimento do que comunico. Assim sendo, ele se defrontará com um triplo registro de tempos: o seu próprio, o do cronista e o histórico. (Thomas Mann. “Doutor Fausto”).

 

Três tempos. Também em Der Rosenkavalier: o barroco da Viena de meados do século XVIII, início do reinado da Imperatriz Maria Teresa; a Viena de fin-de-siècle de Richard Strauss (1864-1949) e Hugo von Hofmannsthal (1874-1929), às vésperas da I Guerra Mundial; o nosso tempo. Não fosse a obra um clássico atemporal, não ecoaria no nosso tempo. Porém, as mudanças, transformações, o fim… são temas que persistem e trazem essa obra prima também ao conturbado século XXI.

Logo na introdução, ouve-se nas trompas a agitação de uma noite de amor. Em seguida, a calmaria, o torpor. Amanhece. Abrem-se as cortinas e nos deparamos com o diálogo quase sem sentido de um casal, com frases musicais no estilo wagneriano. Os protagonistas da cena são uma mulher madura de 32 anos, a Princesa Marie Thérèse von Werdenberg, conhecida como a Marechala por ser a esposa do Feldmarschall von Werdenberg – que, aliás, estava distante, caçando –, e seu jovem e inexperiente amante, o Conde Octavian Rufrano, de 17 anos e 2 meses. 

Como Tristão e Isolda na ópera de Wagner, Octavian lamenta a chegada do dia – “Não quero o dia!”, reclama o jovem, pois agora todos terão a Marechala e ele terá que encarar a realidade. O desejo do jovem é que se façam novamente as trevas. Aqui, diferentemente da ópera de Wagner, o gosto pelas trevas vem de um jovem impulsivo, imaturo e com os hormônios à flor da pele – como fica claro na música de Strauss. É uma provocação explícita de Hofmannsthal, fruto de seu anti-wagnerianismo. Em Der Rosenkavalier, segundo o próprio libretista em trecho bastante duro citado por Burton D. Fisher em seu Opera Journeys sobre Der Rosenkavalier, ele buscava “se distanciar da intolerável gritaria erótica de Wagner – de duração e grau sem limites: um affair repulsivo, bárbaro, quase bestial, berros esganiçados de duas criaturas no cio”.

Mas vem a luz e o quarto de Marie Thérèse é tomado por todos os que com ela desejassem tratar de algum assunto. Prática comum no século XVIII, essas entrevistas matinais mesmo antes de a nobre dama se levantar, ou enquanto ela faz seus preparativos, nos soam como intolerável invasão de privacidade. Contrastes incompreensíveis criados pelas mudanças, pelo tempo.

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The Countess’ Morning Levée (O Despertar Matinal da Condessa), sexto quadro da série satírica Mariage à la Mode (1745), de William Hogarth, no qual Strauss e Hofmannsthal basearam a cena de sua ópera. Pode-se ver a Condessa (que virou Marechala) sendo arrumada pelo cabeleireiro e cercada por cantor, flautista, empregados servindo chocolate, etc.

A primeira visita que entra no quarto – mesmo sem obter permissão para isso – é o Barão Ochs auf Lerchenau, primo distante da Marechala. Com problemas financeiros, o Barão, um aristocrata do campo, acertou com o burguês Faninal, um burguês nouveau-riche interessado em enobrecer a família, um casamento com sua jovem filha Sophie.

O Barão Ochs, cujo nome significa ‘boi’, é uma espécie de personagem bufo fortemente inspirado em Falstaff, de Verdi, que Strauss admirava e em obras de Molière, sem deixar de ter um toque mozartiano de Don Giovanni. Embora se trate de um aristocrata rude, do campo, e que, no segundo ato, seja vítima dos perigos que Viena oferece, é para ele que Strauss reserva a linha mais vienense de sua partitura, uma bela valsa baseada em tema de Dynamiden, que Josef Strauss escreveu em 1865. Mais que isso, ele guarda certo espírito vienense do fim do século XIX, conforme descreve Max Graf (1873-1958) em seu livro Legend of a Musical City: the story of Vienna. “O vienense se considerava indestrutível mesmo em tempos difíceis. Ele nasceu otimista. Essa qualidade, juntamente com sua sensibilidade e sua apreciação da beleza da natureza, fez dele um músico. Sua atitude despreocupada, descuidada em relação à vida, ele expressa cantando, brincando e dançando, bebendo vinho nas tabernas, nos festivais nas verdes vilas, escalando montanhas.” É bêbado e cantando sua valsa que, ferido, Ochs encerra o segundo ato. Papel central sobretudo para o aspecto satírico da trama, antes da estreia era ele que dava nome à ópera: Ochs auf Lerchenau.

Isso posto, foi lamentável o fato de que o baixo alemão Dick Aleschus, o Barão da produção em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, embora convincente cenicamente, tenha demonstrado imensas dificuldades no campo vocal. Quase inaudível no primeiro ato, é bem verdade que melhorou um pouco nos seguintes. Porém, demonstrou grande dificuldade com os graves (um baixo?) e fez-se ouvir mais empurrando a voz rouca e gritada do que a projetando convenientemente. Trata-se, de fato, de um personagem grosseiro, de um ‘boi’ (sem que nos esqueçamos da ressalvas feitas acima), mas isso não dispensa o cantor de ter domínio técnico sobre sua voz, de saber moldá-la de forma consciente de acordo com as características do personagem e de estar vocalmente saudável. Uma voz fraca tira a força do personagem.

Embora não apareça no segundo ato e só volte a pisar no palco no fim do terceiro, outro personagem dominante, e que foi ganhando força e complexidade durante o processo de composição da ópera, é Marie Thérèse. No primeiro ato é ela quem reina. Trata-se, segundo Richard Strauss em trecho citado no livro “As Óperas de Richard Strauss”, do querido e saudoso Lauro Machado Coelho, “de uma grande dama que já teve alguns amantes antes de Octavian e, certamente, terá outros depois dele.” Dentre as visitas matinais, está o cabeleireiro, que a arruma para mais um dia. Ao olhar-se no espelho a Marechala o acusa de ter feito dela uma velha. Dá-se conta de que o tempo havia passado e ela havia envelhecido. A música, então agitada como o populoso quarto, torna-se delicada e introspectiva enquanto Marie Thérèse dispensa todos e começa a refletir sobre o tempo que, sem que nos demos conta, não para de correr. Muito provavelmente o cabeleireiro tenha feito seu cabelo exatamente da mesma forma como o faz todos os dias. Ao que parece, a fonte da melancólica reflexão está mais em lembrar que também ela já esteve no lugar que hoje é da jovem Sophie, quando saiu do convento para o “matrimônio sagrado”. Toma consciência das transformações impostas pelo discreto correr do tempo e que, de súbito, se fazem notar, do envelhecimento, da finitude. Toma consciência de que “hoje, amanhã ou depois de amanhã” o garoto Octavian a trocará por uma moça bela e jovem. Revela levantar-se, durante a noite — a noite, mais uma vez! — a fim de parar os ponteiros dos relógios. Quando Octavian retorna e a encontra nessas reflexões, mostra-se insensível e, mais que isso, chocado. Fica evidente a diferença e o distanciamento entre Marie Thérèse e Octavian. A Marechala o repreende a Octavian, ou Quinquin, em tradução de Lauro Machado Coelho no livro acima citado: “Oh, seja bonzinho, Quinquin. Angustia-me ter a consciência, lá no fundo de meu coração, da fragilidade de todas as coisas nesta terra, de como não podemos deter nada, de como não podemos reter nada, de como tudo escorre entre os nossos dedos, como tudo o que seguramos se dissolve, como tudo se desfaz como a nevoa ou um sonho.”

“Neste texto”, observa Machado Coelho, “em que reaparecerem as metáforas barrocas da agua que escorre, da neve e do sonho, ligadas a efemeridade das coisas, as ideias sobre o tempo inexorável e a velhice e morte inevitáveis, que preocupavam precocemente Hofmannsthal, desde seus tempos de adolescente, assumem uma dimensão ainda mais profunda, pois estão situadas no quadro mais amplo da evocação de toda uma sociedade que agoniza, ainda sem o saber.”

No fim do século XIX, a vida da sociedade vienense começou a mudar em todos os aspectos. Politicamente surgiram incertezas abalando o conforto da sociedade, em poucos anos eclodiria a Grande Guerra, marcando o fim da monarquia, da nobreza. Na arte, a Wien Secession, ou o movimento de Secessão, uniu artistas de todas as áreas, como Gustav Klimt, Koloman Moser, Josef Hoffmann, Max Klinger, etc, que com a romperam com a Künstlerhaus vienense, que para eles havia se tornado estanque, conservadora; na psicologia, Freud dava os primeiros passos na fundação da psicanálise; a música buscava se reinventar à sombra de Beethoven e Wagner.

Para dar vida e credibilidade às reflexões dessa “nobre dama”, que vive e traz à luz as transformações de seu tempo, é necessária uma nobre voz, segura, com belo timbre, com um apoio que lhe permita sustentar as notas, sobretudo as em piano, fazer belos agudos, cantar com certa mistura de melancolia e ironia, com um sorriso melancólico nos lábios. Felizmente o Theatro Municipal encontrou, na pessoa elegante da soprano argentina Carla Filipcic Holm, essa grande voz! Só neste ano, ela é a terceira argentina a brilhar na cena lírica de São Paulo. Em abril, María Belén Rivarola levou o primeiro prêmio da edição 2018 do Festival de Canto Maria Callas e, em maio, Jaquelina Livieri viveu sua intensa e contagiante Violetta na La Traviata do Theatro Municipal.

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Carla Filipcic Holm: Marie Thérèse, a Marechala.

Um momento que merece especial destaque, e que rendeu o título de “O Cavaleiro da Rosa” à ópera, é a linda e célebre apresentação da rosa, quando, escolhido pela Marechala como emissário do Barão, Octavian vai entregar a rosa a Sophie. “O título definitivo”, explica Machado Coelho em seu saboroso capítulo dedicado à obra, “refere-se a um ‘antigo costume matrimonial’ vienense: o de o noivo pedir a alguém da família que fosse apresentar à sua pretendida, em sinal de afeto, uma rosa de prata. Belíssimo costume, que tem apenas um defeito: nunca existiu! Hofmannsthal o inventou de toutes pieces, inspirando-se no habito que tinha o Papa de, no final do ano, oferecer rosas de ouro as damas mais nobres e virtuosas da corte romana (cujos maridos, coincidentemente, tinham feito polpudas doações as obras pias do Vaticano). (…). Esse ‘antigo costume vienense’, criado pelo libretista, soou tão verossímil que, por muito tempo, houve quem jurasse de pés juntos que ele de fato baseava-se numa tradição aristocrática austríaca.

Na cena da apresentação da rosa tem-se mais uma citação a Tristão e Isolda ou, considerando o pensamento do Hofmannsthal acima transcrito, uma versão civilizada dessa magia que leva a uma irresistível atração. Quando os jovens amantes comentam sobre o perfume da rosa, é como se fossem tomados por um encantamento e se descobrissem apaixonados. A música, extremamente lírica e delicada, dá a sensação de que o tempo, por alguns instantes, parou. É, porém, como que perturbada por um tema de notas meio erráticas, que representa o brilho disforme, em todas as direções, da rosa de prata. Se por um lado esse brilho encanta, traz também algo de inquietante, de transformador. Mas talvez a ópera de Wagner não seja a única referência. É possível ouvir a linha de Sophie ao receber a rosa e não lembrar de “Mon coeur s’ouvre a ta voix”, da ópera Sansão e Dalila, de Saint-Saens? Muito provavelmente não é por acaso que a melodia que soa na ópera de Strauss é a mesma de quando, no ponto culminante da ária, Dalila canta “Ah! Verse-moi, verse-moi l’ivresse”. Um belo registro de todo o encantamento dessa cena, protagonizado pelas fantásticas Diana Damrau e Sophie Koch em produção de Baden Baden (2009), pode ser visto no YouTube.

Após a estreia de Elektra, Strauss declarou que queria fazer uma comédia mozartiana. Em Der Rosenkavalier é impossível não se lembrar de As Bodas de Fígaro, Don Giovanni, Cosí fan Tutte (aqui mudando para Tutti!) e até de A Flauta Mágica. O primeiro e mais evidente eco de Mozart que se nota em Der Rosenkavalier é o personagem de Octavian, um herdeiro direto de Cherubino, o pajem de As Bodas de Fígaro. Ambos são garotos com os hormônios transbordando e que devem ser interpretados por (mezzo) sopranos. Ambos estão descobrindo sua sexualidade, buscam mulheres mais velhas, casadas, mas acabam, no fim, com suas jovens amadas. Ambos se disfarçam e se fazem passar por mulheres. Para não ser descoberto, no primeiro ato quanto no terceiro, Octavian se veste de camareira e cria o personagem Mariändel. No início da ópera, o disfarce tinha o intuito de não ser descoberto, no quarto da Marechala, por Ochs. Depois, foi como parte de uma farsa, aos mondes de As Bodas de Fígaro e Falstaff, para livrar Sophie de Ochs. É bastante rico e interessando o personagem de Octavian. Começa despreocupado, ingênuo, duvidando das mudanças trazidas pelo tempo. Escolhido como o nobre cavalheiro emissário da rosa de prata que Ochs enviava à sua noiva, apaixona-se à primeira vista por Sophie. No final, resolvido o problema do indesejado casamento, diante de Sophie e da Marechala, Octavian fica confuso, sério, aprende a calar, a esperar, a observar. Torna-se homem e, segundo a Marechala, um homem igual a todos os homens. “Cosi fan ‘tutti’”? Se Mozart usou uma farsa para mostrar que as mulheres são todas iguais, a de Strauss e Hofmannsthal inclui, também, os homens.

Com tantas facetas, é um grande desafio para a soprano ou, mais comumente, mezzo-soprano a interpretação do papel de Octavian. Na récita de domingo, 17 de junho, enquanto seu personagem crescia emocionalmente, Luisa Francesconi foi crescendo vocalmente. Inteligente e com boa desenvoltura cênica, transmitiu a complexa personalidade do jovem nobre.

É apenas aparente, mas, no fundo, falsa, a associação feita por Marie Thérèse entre Sophie e ela quando jovem. No caso de Sophie, ao contrário do que ocorreu com a Marechala, o casamento não se concretizou, a vontade da jovem, embora a duras penas, prevaleceu sobre a do pai. A ilusão que a jovem cultivava em relação à nobreza deu lugar à realidade. Diferentemente das famílias aristocratas dos anos passados, nas famílias burguesas começou a surgir espaço para contestação e Sophie lutou contra um casamento que, como anunciou Octavian levando Ochs a cair na risada, ela não queria. Mais que se rebelar como boa adolescente, Sophie atingiu seu objetivo. Porém, viu que também a vida de Octavian possuía lá seus mistérios um tanto picantes. Ameaçou outra revolta, mas a razão já havia cedido ao sentimento. À intérprete de Sophie cabe, pois, alternar momentos de meiguice quase infantis com momentos de maior rebeldia e outros de sensibilidade. A menos de alguns poucos agudos mal sustentados, foi boa e adequada a interpretação da soprano russa Elena Gorshunova na récita dominical.

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Elena Gorshunova e Luisa Francesconi, no segundo ato, como Sophie e Octavian.

No final do terceiro ato, tendo a farsa armada por Octavian revelado Ochs a Faninal e Mariändel (Octavian) a Ochs, o compromisso do casamento foi desfeito, mas Ochs não conseguia perceber que tudo havia desmoronado. “Não entende quando uma cosia acabou?”, pergunta-lhe a Marechala. Na música, melodias do primeiro ato, da cena entre Marie Thérèse e Octavian, das reflexões sobre o implacável tempo. Quando, finalmente, o Barão se retira, a Marechala tem que enfrentar o fato de que aquilo com que ela sabia que fatalmente se defrontaria, o do fim de seu relacionamento com Octavian, havia chegado bem mais cedo do que ela esperava. Estava ela diante de Octavian e Sophie e não podia, como Ochs, tentar negar o fim. “Hoje, amanhã ou depois de amanhã. Eu não disse a mim mesma? É o que acontece a toda mulher. Eu não sabia?” 

Em um dos momentos mais belos da ópera – de todas as óperas já escritas –, onde outra vez o tempo parece parar, Octavian, Sophie e a Marechala cantam em um trio onde seus sentimentos soam simultaneamente e em harmonia. A Marechala começa: “Prometi amá-lo honestamente, que amaria inclusive uma outra que ele amasse. Na verdade eu não achava que teria que cumprir a promessa tão rápido. Há tantas coisas no mundo em que não conseguimos acreditar quando delas ouvimos falar. E, de repente, quando as vivenciamos, passamos a acreditar.” Enquanto isso, Sophie e Octavian tentam entender o que está acontecendo, até chegarem à conclusão sobre seu amor mútuo. Enquanto Octavian intimida-se diante da Marechala, Sophie sente um misto de gratidão, quase devoção, e ciúmes.

A renúncia de Marie Thérèse a Octavian, em favor de Sophie, significa simbolicamente a renovação, a mudança, a geração jovem que se prepara para assumir o poder, a burguesia que, aos poucos, ocupa o lugar da aristocracia em declínio”, explica Lauro Machado Coelho.

Nesse momento tão sublime pareceu descuidada sobremaneira a encenação de Pablo Maritano, até então bastante boa. Fecharam-se as cortinas e os três, em linha, como em um concerto, puseram-se a cantar. Enquanto isso, atrás das cortinas havia, e era bastante audível, toda uma movimentação de mudança de cena. Seria o momento mais sublime e profundo da ópera mero entrecenas? Não mereceria ele todo o palco, todo a atenção, toda a devoção?

Em suas produções – tanto na de Salzburg, 2004, quanto na de 2016 para a Royal Opera House e o Metropolitan Opera, o diretor Robert Carsen optou por transportar a trama para a data da composição. Em entrevista no intervalo da transmissão em HD do Met Opera, em 2017, Carsen afirma que “Der Rosenkavalier é uma ópera muito difícil de ser dirigida porque ela é uma, ou talvez a comédia social. Você está lidando com um período particular, com uma sociedade muito particular, com códigos de comportamento particulares e uma interação, então você não pode escapar dos sentimentos sociais do século XIX, mas evidentemente a peça tem um sentimento de fin-de-siecle, porque o mundo que está sendo descrito é o mundo que, enquanto Strauss e Hofmannthal estão compondo, está na iminência de desaparecer para sempre: o fim dos Habsbourgs, a Primeira Guerra Mundial está na outra esquina”. O diretor explica que do primeiro para o segundo ato, a cena muda do tradicional palácio da Marechala para uma casa nova, no estilo dos arquitetos da Secessão Vienense, construída pelo novo e muito rico Faninal — papel no qual, em São Paulo, Rafael Thomas saiu-se muito bem. No terceiro ato, ele ambiente o encontro entre Ochs e Octavian disfarçado de Mariändel em um exagerado bordel. Sobre isso, e analisando a produção de 2004, Lauro Machado Coelho escreve: “ambientar o último ato em um bordel (…) faz com que a cena final perca inteiramente o sentido pretendido pelos autores.

A produção em cartaz no Theatro Municipal, dirigida por Pablo Maritano, segue a mesma linha de Carsen mas, felizmente, elimina excessos: situada nos tempos de Strauss e Hofmannsthal, ambienta o primeiro ato no palácio, no quarto da Marechala, o segundo em uma casa de arquitetura mais moderna e a primeira parte do terceiro em um bordel. Sobre Carsen, Maritano teve a vantagens de não militarizar o cenário e os figurinos e usar, no bordel, personagens que mais pareciam saídos da commedia dell’arte mais de acordo, portanto, com o espírito da ópera e com os personagens Valzacchi e Annina — muito bem interpretados, aliás, por Paulo Queiroz e Magda Painno. Um terrível exagero cometido por Carsen e do qual, felizmente, Maritano passou longe, foi fazer Mariendel chegar, no encontro com o Barão, vestida de Marlene Dietrich em The Blue AngelQuanto à ambientação nos tempos de Strauss, a própria obra traz fortes referências ao século XIX e ao início do XX, a 1911, quando estreou, com grande sucesso, em Dresden. O uso de valsa estilo família Strauss é a referência mais evidente. Soa, pois, absolutamente legítima a ideia de colocar, no palco, a fascinante Viena fin-de-siècle. O pecado de Maritano, conforme já observamos, foi mesmo a (falta de) concepção justamente do trio.

Eficientes e de bom gosto, os cenários de Italo Grassi, com uma estrutura giratório que foi usada na medida justa, possibilitaram certa mobilidade à cena, mudando, gradativamente, o visual. No segundo ato, os espelhos meio desformes posicionados nas laterais, fizeram coro com a música e ajudaram a espalhar, em várias direções, o brilho da rosa de prata.

Quanto à Orquestra Municipal, sob a regência do maestro Roberto Minczuk, atacou a introdução de forma que parecia que quem estava atrás das cortinas era Ochs, e não Octavian. Em boa parte da ópera Strauss nos transmite a sensação de que as vozes estão flutuando sobre o colchão sonoro da orquestra. Em poucos momentos a OSM conseguiu atingir essa delicadeza e homogeneidade em sua sonoridade – a cena final, felizmente, foi um desses momentos. Porém, de um modo geral o resultado da orquestra foi bastante satisfatório, ainda mais se considerarmos a complexidade da obra em questão. A má impressão da introdução durou pouco e, gradativamente, a orquestra foi se tornando mais coesa.

 

Coisas que só existem no Theatro Municipal de São Paulo.

Na saída da récita de domingo, uma funcionária, na escada lateral do Foyer, tentou me impedir de descer por aquela escada. Essa ideia, nascida na gestão anterior, além de descabida, coloca em risco os frequentadores. Mais reta e com corre mão mais adequado, o uso a escada lateral evita, também, um amontoado de gente na escada principal. Não consigo entender o que os organizadores pretendem ao obrigar os frequentadores a se empurrarem em uma escadaria larga e praticamente sem corre mão. Todas as vezes que vou ao Metropolitan Opera de NY e utilizo as, evidentemente liberadas, escadas laterais, me lembro disso, me lembro de que no meu país, na minha cidade, essa descida que deveria ser tão natural requer uma explícita transgressão.

Se me sentei no Foyer, foi, dessa vez, na lateral, e não na parte central onde costumava comprar meus ingressos ou, durante a gestão passada, as minhas 5 assinaturas. A atual gestão bloqueou, reservando para convidados, toda a parte central do Foyer e boa parte da pateia e do Balcão Nobre. Pelo que pude observar do mapa de acentos, no exato momento do início da venda das assinaturas e, mais tarde, através de divulgações do teatro via Facebook, metade da capacidade do teatro é reservada para… sabe-se lá para quem! Na parte central do Foyer sei que se encontram convidados da produção que, outrora, se sentavam nas Frisas. Os melhores lugares que, antes, eram do público, agora são privativos. Isso em um teatro público que recebe, anualmente, gorda verba municipal. Se não se trata de apropriação indevida do espaço público (e não administração, como deveria ser), não sei qual nome dar.

Uma última observação. Até onde entendo, fotografar ou filmar um bis após o espetáculo é algo descontraído, que as pessoas fazem porque gostam levar uma lembrancinha ou compartilhar o evento com amigos. Daí para colocar um aviso que, no meio da ópera, é permitido filmar uma parte, há uma distância imensa. Em um mundo ideal, as pessoas sacariam os celulares, filmariam, e, em seguida, os guardariam. Mas no mundo real, muitas pessoas não sabem manusear os celulares, ligam a luz de flash, fazem (mais) barulho, mexem e remexem… e isso pouco antes do belíssimo trio final! A vida não é feita só de selfies. Isso, definitivamente, TMSP à parte, não existe em teatro nenhum do mundo, nem nos mais lotados e concorridos, que têm estratégias mais consistentes para cativar o público.

 

(As fotos da produção foram todas retiradas da página do Facebook do Theatro Municipal.)

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