Nem todos os homens estão interessados em entender o que é ser mulher na sociedade. Esse, com certeza, não foi o caso do compositor tcheco Leoš Janáček (1854-1928). Já com sua ópera Jenůfa, dedicada, em 1903, à memória de sua filha Olga, que acabara de falecer, e composta sob a influência do sofrimento da filha enferma, Janáček demonstrou o interesse pelo universo feminino. Anos mais tarde, em 1917, esse interesse ficou ainda mais acentuado quando conheceu sua grande musa, Kamila Stösslová: casada, apaixonada pelo marido, mãe e 38 anos mais jovem que ele. Em carta a Kamila, Janáček comenta sobre os passeios que fizeram juntos quando se conheceram, na ausência de seus respectivos cônjuges: ela falava do marido com amor e devoção enquanto ele se lamentava de seu difícil relacionamento com sua esposa Zdenka. Talvez a peça A Tempostade (1859), do escritor russo Aleksandr Ostrovsky, tenha-o feito se recordar desses passeios. Na obra, Katerina Kabanová, a jovem e oprimida protagonista, casada, se encontra com seu amado Boris, pelo qual se apaixonara à primeira vista, durante a ausência de seu marido. Também como aparece em outro momento no texto de Ostrovsky, Janáček recomenda a Kamila que não seja tão apegada ao marido para que ele possa ter mais liberdade.
Se há pontos em comum entre o enredo de Ostrovsky e o relacionamento entre o compositor e Kamila, também há os de importante divergência. Kamila dava importância ao casamento e passou a não aceitar se encontrar com Janáček sem a presença de um dos cônjuges. Kamila não teve a triste sorte de Katerina – ou Kátia, como viria a ser chamada na ópera de Janáček –, que acabou por se atirar no Volga. Contudo, quando se está apaixonado, salientam-se mais as coincidências. Assim nascia Kátia Kabanová, sexta ópera de Janáček, com libreto no qual o próprio compositor moldou a personalidade da protagonista de Ostrovsky de maneira a aproximar-se da doçura e da fragilidade de sua musa, da Kamila por ele projetada; uma obra inspirada por Kamila e a ela dedicada.
Kátia vive às margens do Volga com Tichon Kabanov, seu marido, e Kabanicha, sua sogra, uma viúva que domina completamente a família. Tichon a obedece com toda a submissão; Kátia tenta ser gentil, mas é inútil, é hostilizada, vítima da cruel opressão e dos ciúmes da sogra. Na mesma cidade acabava de chagar o jovem Boris, que havia perdido os pais, e estava morando com o tio, Dikoj, guardião de sua herança, a qual só entregaria a ele e à irmã, após a emancipação e com a condição de ser bem tratado por Boris. O jovem e Kátia se apaixonam sem sequer se terem falado, literalmente à primeira vista. Obediente à mão, Tichon sai em viagem, vai ao mercado de Kazan. Kátia fica após jurar ao marido, por iniciativa própria, já consciente da paixão por Boris e do pecado que estava arriscada a cometer, que se na ausência dele pusesse os olhos, falasse ou pensasse em alguém que não nele, jamais haveria de ver os pais, morreria sem remissão.
Tichon parte. Kátia, sempre humilhada por Kabanicha, encontra afeição em Varvara, a filha adotiva de Kabanicha, que lhe dá uma chave para que ela possa sair, durante a noite, e se encontrar com Boris. O primeiro impulso de Kátia é jogar a chave no rio, mas depois cede à tentação. À noite, o casal se encontra sob a proteção de Varvara e Kudrjás, seu namorado, aproveitando que Kabanicha está entretida com Dikoj. Quando Tichon volta. Kátia não consegue suportar o peso da culpa, aliado ao fato de que não poderá mais ver Boris. Confessa publicamente sua culpa e acaba por jogar-se no Volga. Boris vai para a Sibéria, a mando de Dikoj; Varvara e Kudrjás fogem para poderem viver em liberdade.
Não é só Kamila que está presente em Kátia abanová. No ano seguinte ao encontro com Kamila, Janáček reencontrou-se com outra “mulher” que havia conhecido uma década antes: Cio-Cio-San, a Madama Butterfly de Puccini. Como Katia, Cio-Cio-San apaixona-se à primeira vista pelo homem que, julgava ela, iria libertá-la. Colocou-o acima de sua família, de sua cultura, de sua religião, de sua história, deixou-se destruir e acabou pondo fim à própria vida. Musicalmente podem-se ouvir ecos da Butterfly em Kátia Kabanová. No momento em que Kátia aparece, por exemplo, ouve-se, na orquestra, um tema que faz lembrar a apresentação da Butterfly. No fim, quando vê Kátia morta, Tichon, seu marido, grita seu nome, como Pinkerton em Madama Butterfly – e também Rodolfo, em La Bohème. E o tema desenvolvido pela orquestra, aliás, faz lembrar muito o final dessa última ópera.
Embora politicamente anti-Alemanha e anti-Áustria, Janáček se deixou influenciar por Richard Strauss, alemão que morava em Viena. O momento mais straussiano de Kátia Kabanová talvez esteja no impactante dueto do primeiro ato entre Kátia e Varvara. Quando da revelação dos sonhos e amores proibidos, ouve-se uma referência à bela melodia da entrega da rosa em O Cavaleiro da Rosa – que, por uma feliz coincidência, esteve em cartaz há poucos meses no Theatro Municipal de São Paulo. Justamente nesse instante, na ópera de Strauss nascia, revelava-se, um irresistível amor contrário às expectativas da sociedade.
Outro aspecto que aproxima Kátia Kabanová de O Cavaleiro da Rosa é que ambas apontam para uma sociedade em transformação. Em Kabanová, reconhecer apenas o lado cruel e sombrio da sociedade russa do fim do século XIX seria uma leitura deveras superficial e pessimista. Se por um lado existe Kabanicha, uma matriarca, hipócrita, autoritária, por outro existem Varvara e Kudrjás, a nova geração mais livre, mais leve, que acaba fugindo para começar uma nova vida. No meio estão Kátia, que, deslocada, quer se libertar, mas não consegue, e Boris, para quem a vida haverá de continuar, mas também a luta por se livrar da tutela do tio. Ao fraco e insignificante Tichon parece estar reservado seguir as ordens da mãe e continuar a cultivar um estilo de vida em extinção.
Kátia Kabanová estreou no Teatro Nacional de Brno em 1921. Foram necessários quase cem anos para que, em 2018, graças ao Theatro São Pedro, a ópera chegasse ao longínquo Brasil.
A ótima concepção cênica de André Heller-Lopes e o plasticamente bem acabado cenário de Renato Theobaldo não colocaram o rio Volga, que dá unidade à obra, que tudo inspira e às margens do qual tudo se desenrola, explicitamente no centro da cena. Souberam muito bem, contudo, insinuá-lo, torna-lo sempre presente. Logo no início, o cativante Kundrjás aponta para o rio, que ele chama de “um milagre”; e aponta na nossa direção, além das estruturas de madeira montadas como ponte sobre o palco e que se estendem sobre o fosso da orquestra. Não podemos vê-lo, mas não resta dúvida de que o Volga está lá, oculto pela vegetação florida e rasteira, azulada graças ao seu reflexo.
O cenário – impecável para o público, mas, cheio de degraus, rampa e estreitas passagens, perigosamente arriscado para o elenco – se mantém o mesmo durante toda a ópera. Porém, mudanças na iluminação e na configuração dos troncos de árvores, que descem e sobem de acordo com a ambientação, quebram a monotonia. A iluminação de Fábio Retti tem o grande mérito de ressaltar a parte de madeira onde se dão as cenas no interior da casa dos Kabanov quando é esse o caso e, quando a ação ocorre em ambiente externo, a estrutura de madeira fica quase oculta e o foco passa para as árvores e flores. Porém, a iluminação pecou um pouco ao abusar de cores chapadas e, em certos momentos, como no fim do segundo ato, ao criar um colorido um tanto artificial.
Os figurinos são austeros quando é apresentada a família Kabanov, no primeiro ato. Porém, nas mãos de Kátia logo se vê um par de sapatos vermelhos entregue por Varvara – e também uma caixa de sapatos forrada com papel pardo, a nosso ver um tanto deslocada e que fica bom tempo presente no palco. E são esses sapatos que ela veste, em substituição ao sério par preto, quando o submisso Tichon parte em viagem a mando da mãe. Aos sapatos vermelhos se unirá, no momento do encontro com Boris, no segundo ato, um vestido mais leve, florido. Após a revelação de seu grande pecado, no ato final, quando está sozinha, Kátia tira os sapatos vermelhos: sua relação com Boris não é mais viável. Não há, porém, mais os sapatos pretos, não é mais possível vesti-los, não é possível voltar atrás. Katia, sozinha, condenada, fica descalça, indefesa.
Dois momentos da produção merecem destaque. O primeiro se dá no início do segundo ato. Enquanto apenas as mulheres estão em cena, Kabanicha recrimina Kátia por não estar chorando e se lamentando por conta da ausência do marido. Um fio iluminado passa por todas as mulheres da casa dos Kabanov (no caso quarto) e as coloca como moiras, tecendo o fio da vida. É impossível não notar a semelhança entre a imagem produzida no São Pedro e o quadro de John Melhuish Strudwick (1884), ambos retratados abaixo. De fato, nessa ópera são as mulheres, Varvara, Kátia e Kabanicha, que tudo determinam, inclusive a morte. Embora descriminadas pela sociedade, são elas que tecem com o fio da vida. Também na vida de Janáček, de suas cartas pode se concluir que não raro Kamila, em parceria com Zdenka, tomava alguma atitude para tentar convencer o compositor de determinado assunto. Em Madama Butterfly, os homens criam o problema, mas são as mulheres, em especial Suzuki, Kate, mulher de Pinkerton, e Cio-Cio-San que tomam as atitudes para o desfecho.
O segundo momento a ser destacado deu-se no terceiro ato, quando Kátia e Boris se reencontram para a despedida final. Um abismo os separa, cada um está de um lado da estrutura do palco. A aproximação não é mais viável. O efeito criado foi belo e forte.

No sentido oposto, há a discutível concepção cênica da noite em que Kátia e Boris se encontram. Da forma como a despedida é apresentada ao público, não há dúvida de que o casal teve relação sexual. Aliás, os dois casais: Kátia e Boris; Varvara e Kudrjás. Se é legítimo supor que eles tenham feito sexo, tratando-se de uma sociedade ribeirinha, antiquada, repleta de superstições, sentimentos de culpa e misticismo, é ainda mais legítimo que permaneça a dúvida em relação a o que ocorreu durante os encontros noturnos. Afinal, apenas passear ocultamente com seu amado ou abraça-lo apaixonadamente, como indicado no libretto, já seria um pecado suficientemente letal para uma moça atormentada que, conforme observamos no nosso breve resumo acima, havia se auto amaldiçoado caso viesse a pensar em outro homem que não o marido. Caso se tratasse de Kabanicha e Dikoj, para os quais a sexualidade mais vulgar faz todo o sentido, essa cena teria sido adequada, ali não resta a menor dúvida do que aconteceu, não há sutileza nem delicadeza.
Logo no início já se destacam o tenor Giovanni Tristacci, como Kudrjás, que nos apresenta o Volga e, ao longo da ópera, as belas canções inspiradas no folclore eslavo e o baixo Savio Sperandio, que vive Dikoj, o tio de Boris. Com sua desenvoltura cênica, Sperandio soube transmitir o caráter desse personagem mesquinho e hipócrita, que insiste, aos gritos, que os raios de uma tempestade nada têm a ver com descargas elétricas, mas sim com o castigo dos céus. Autoritário, bruto e bufo, tem todas as credenciais para ser um bem-sucedido candidato a presidente do Brasil. Não à toa Dikoj e Kabanicha se entendem bastante bem.
Ao contrário de Dikoj, o caráter meio bufo de Kabanicha, presente na peça de Ostrovsky, foi totalmente suprimido por Janáček. No papel da sogra megera, reservado por Janáček para contralto, a soprano Claudia Riccitelli, que não é contralto e sequer mezzo-soprano, fez o que pôde, mas demonstrou certa dificuldade vocal. Em um papel sem melodia, sem qualquer lirismo no áspero canto, quase sem alma, que exige uma voz forte, pesada e metálica, faltou-lhe volume e metal. Além desse problema, escalar uma soprano para o papel da sogra tira a importante exclusividade de Kátia, que não parece ter sido uma decisão aleatória do compositor. Se ela representa a sensível e especial Kamila, deveria ser a única soprano da noite, sem concorrentes.
O fraco Tichon, obediente, submisso à mãe, sem voz, sem iniciativa, também sem canto, é interpretado de forma conveniente por Juremir Vieira. Se o tenor não brilhou, isso de certa forma até ajudou a reforçar o aspecto psicológico de seu personagem.
A melodia falada é uma característica de Janáček, que costuma deixar o lirismo com a orquestra. Porém, dentro dessa melodia falada é possível fazer a diferenciação entre o canto agressivo aliado ao acompanhamento orquestral áspero das linhas de Kabanicha, Tichon e Dikoj, que contrastam com os dos demais, especialmente de Kátia.
No papel de Boris, o tenor Eric Herrero, apesar do bom desempenho, com seu canto um pouco duro e empurrado não consegue nos convencer de que de fato ama Kátia. Isso, embora obviamente não intencional, não chega a ser um problema. Reprimido por Dikoj, do qual depende e sob o qual vive em uma relação que beira a chantagem, Boris se dá conta de que está desperdiçando a flor da idade e se apaixona, sem motivo, sem nenhum contato direto, por uma moça casada que só havia visto de longe. É legítimo, portanto, que tenhamos dúvida em relação ao real amor que ele sente por ela, que bem podia ser mais uma fuga, uma forma de tentar se libertar. Alertado sobre o fato de que poderia destruir a vida de Kátia, ele nada faz, não consegue domar o coração, parece não se preocupar muito com as consequências – como Pinkerton.
Menção honrosa merece a ótima mezzo-soprano Luisa Francesconi. Com voz firme, redonda, bem cuidada e que se projeta envolvendo o ambiente, além da presença de palco impecável de alguém que se deixa levar e dominar pelo personagem, deu brilho à garota Varvara, a filha adotiva de Kabanicha que se afeiçoa por Kátia. Em seu rosto, principalmente durante os duetos com Kudrjás ou com Kátia, Francesconi imprime aquele ar de menina arteira, típico da malícia juvenil. Ela e Giovanni Tristacci fazem, aliás, dos belos duetos entre Varvara e Kudrjás os momentos mais saborosos da noite.
Por falar em duetos, outro ponto alto é o de Varvara com Kátia, no fim do primeiro ato. Fica, nesse ponto, notório o entrosamento entre Francesconi e Gabriella Pace – a soprano, aquela que deveria ter sido a única –, que deu literalmente vida a Kátia Kabanová. Verdadeiro tour de force, o papel de Kátia é daquele tipo que decorar o texto em tcheco parece ser o menor dos desafios. Presente no palco nos três atos, personagem principal, única a ganhar um grande monólogo – um autêntico lamento, como o de Arianna que, também ela, após se ter entregue a Teseu, jamais poderia rever pátria, pai ou mãe, um lamento ao qual o canto do rio responde –, é dela que depende o sucesso da ópera. Pace obteve grande êxito. Se em poucos momentos a linha é um pouco grave para a sua voz, que chega a desaparecer sob a massa orquestral, na maior parte do tempo seu canto transmite os dramas e sonhos de Kátia.
A música de Janáček é densa e significativa. Pela orquestra transmite, conforme já observamos, a delicadeza de Kátia, a brutalidade de Kabanicha e Dikoj, o tema do destino – protagonizado pelo tímpano –, a partida de Tichon – com um tema em que se ouve um som de trenó e um solo de oboé –, o canto do rio, etc. É, portanto, fundamental o papel da orquestra.
E é justamente do fosso que vem o ponto fraco da produção. Mesmo com o ótimo maestro Ira Levin, que sabe imprimir as dinâmicas dessa música que traz constantes mudanças, que bruscamente muda de humor, de sonoridade, os problemas de afinação e desencontros da orquestra se fazem ouvir de forma bastante acentuada. Se houve um tempo em que a cada ópera comemorávamos a evolução da Orquestra do Theatro São Pedro, agora temos que lamentar que o que todos temiam, enfim, aconteceu. Com demissões, redução de seu efetivo e contratação de músicos que não pertencem ao grupo, a qualidade sonora da orquestra se foi. Pior: quem é o maestro responsável pela orquestra? Quem cuida de seus ensaios, sua sonoridade? A resposta é digna de Homero: Ninguém. Ninguém acompanha a Orquestra do São Pedro; Ninguém se preocupa com sua coesão; Ninguém molda sua sonoridade. O resultado não poderia ser outro, mesmo nas mãos de um especialista que definitivamente não é um Ninguém, mas é um maestro convidado que permaneceu pouco tempo com a orquestra. Parece que o modelo empregado pela Filarmônica de Viena, que não tem um maestro titular, não é adequado para a Orquestra do Theatro São Pedro com seus apenas 8 anos de vida.