Se originalmente a tragédia Elektra é bem grega, a ópera que marca a estreia da frutífera parceria entre Richard Strauss (1864-1949) e Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) é bem austríaca. Em sua Elektra, Hofmannsthal transporta a obra de Sófocles para as crises da modernidade vienense do fin-de-siècle — crise da sociedade patriarcal, da lei do pai, e crescente misoginia — e para o reino da psicanálise que dava seus primeiros passos.

Embora a ação se passe na mesma Micenas de Sófocles e haja, grosso modo, uma correspondência entre as cenas das Elektras de Hofmannsthal e Sófocles, as situações são diversas e os diálogos, significativamente diferentes. Mais que isso, o caráter da protagonista Elektra de Hofmannsthal é diferente do da de Sófocles. Na tragédia grega, Elektra busca a vingança da morte do pai para que a justiça seja feita e a família possa se libertar do crime cometido por sua mãe. Em Hofmannsthal, ela é absolutamente obcecada pela ideia de vingar a morte do pai, Agamenon, e matar seus assassinos: Clitemnestra, sua mãe, e Egisto, então amante de Clitemnestra e que após o crime passou a ocupar o lugar de Agamenon. Na figura de Elektra podem ser reconhecidos casos clínicos discutidos por Sigmund Freud e Joseph Breuer em Estudos Sobre a Histeria (1893), que integrava a biblioteca de Hofmannsthal.

Na versão de Hofmannsthal, Elektra estreou como peça de teatro em 1903. Embora tenha ficado impressionado com a obra, Strauss em princípio titubeou um pouco para transformá-la em ópera por ter julgado se tratar de um tema muito próximo a Salomé, sua ópera anterior e primeiro sucesso no gênero. Hofmannsthal, porém, apontou as diferenças entre as duas tramas e convenceu o compositor a fazer de Elektra a sua quarta ópera. Em janeiro de 1909, Elektra estreava em Dresden, mesmo teatro em que, três anos antes, Salomé havia estreado.

1903 também foi o ano em que Otto Weininger publicou, em Viena, seu tratado misógino Sexo e Caráter, que já comentamos em nosso texto anterior, sobre a ópera “O Anão”, de Zemlinsky. O feminino, segundo Weininger, pode ser associado ao material, sensual, irracional, amoral. Para ele, a supremacia do homem era fundamental para que a humanidade trilhasse um caminho mais espiritualizado. Em sua visão, enquanto o progresso da humanidade vinha do homem ariano do norte da Europa, a mulher trazia o regresso ao que havia de mais primitivo.

É evidente que a publicação de Sexo e Caráter não exerceu influência sobre a obra de Hofmannsthal, uma vez que são do mesmo ano. Hofmannsthal leu o tratado de Weininger e fez anotações, mas seu exemplar é posterior à estreia de Elektra no teatro. Portanto, se em alguns aspectos as mulheres da peça (ou do libretto da ópera) apresentam semelhanças com as mulheres de Weininger, isso deve ser atribuído mais ao pensamento predominante na Viena da passagem do século XIX para o XX do que a uma influência direta de Weininger. Livro e peça foram produzidos dentro da mesma sociedade vienense de fin-de-siècle.

No libretto e também no tratamento musical dado a Strauss para Elektra é possível encontrar ecos tanto da misoginia de Weininger como da crise de identidade da sociedade patriarcal. Em seu excelente artigo Fin-de-siecle fantasies: Elektra, Degeneration
and Sexual Science (Cambridge Opera Journal, 5, 2 (1993),141-165), Lawrence Kramer observa que “Elektra encarna toda a anarquia física e emocional que a cultura patriarcal existe para suprimir. Mas ela o faz apenas em consequência de sua absoluta devoção a essa ordem.” Segundo Jacques Le Rider — em A Modernidade Vienense e as crises de identidade (Ed. Civilização Brasileira, 1992) –, “No mundo de Egisto, no palácio devastado de Agamenon, Elektra deve, sozinha (…), reconstruir ‘toda a casa’; os valores masculinos foram varridos, enquanto que a utopia do matriarcado foi irreversivelmente desacreditada pela barbárie de Clitemnestra. A lei do pai foi abolida, e os homens parecem ser incapazes de retomar a ordem do mundo em suas mãos, ordem esta da qual foram outrora os principais responsáveis.”

Foi Strauss quem deu a força dramático-musical às mulheres — e sobretudo a Elektra –, mas foi Sófocles quem lhes deu o protagonismo e Hofmannsthal quem reduziu ainda mais a importância dos papéis masculinos. Le Rider conta que, em 1903, na estreia da Elektra em Berlim, Maximiliam Harden observou quão secundários eram os papeis masculinos. Ainda segundo Le Rider, o próprio Hofmannsthal confirmou essa observação: “De meu Elektra, ele (Harden) disse a única coisa pertinente que já li a esse respeito, a saber: que seria uma peça mais bela e uma obra de arte mais pura caso Orestes estivesse pura e simplesmente ausente dela.”

É verdade que Hofmannsthal e Strauss deram força a Elektra e o protagonismo às mulheres. Porém, as pintam com cores não exatamente belas. Para Kramer, “A dupla leitura de Strauss [e Hofmannsthal] para Elektra representa uma complexa negociação com a misoginia da cultura supremacista. Privilegiando a subjetividade de Elektra, Strauss vai contra o cerne da cultura supremacista, que nega a legitimidade das mulheres (…) como sujeitos individuais. Por outro lado, sua caracterização de Elektra reproduz todos os traços de primitivismo — animalidade, impureza, sensualidade cruel, perversidade erótica, amoralidade, automatismo — rotineiramente atribuídos às mulheres para justificar sua negação.”

Como em O Anel do Nibelungo, de Wagner, os diálogos predominam em Elektra. No primeiro deles, entre Elektra e sua irmã Crisóstemis, já se pode notar uma diferença significativa entre a ópera e a tragédia de Sófocles. Crisóstemis chega, como no original grego, para avisar a irmã de que Clitemnestra e Egisto pretendiam prendê-la. Daí em diante, Hofmannsthal se distancia de Sófocles e escancara a visão que a sua sociedade patriarcal tem da mulher: a reação de Elektra é se referir a Clitemnestra e Egisto como “as duas mulheres.” Em sua lógica, como Egisto matou Agamenon pelas costas, ele é um covarde e não é, portanto, digno de ser chamado de homem: é um “maricas” e sua atitude covarde e criminosa, feminina. No mesmo diálogo, Crisóstemis fala que deseja casar e ter filho, ser mulher: “eu sou uma mulher e quero um destino de mulher”. É aí exposta a única serventia das mulheres.

No diálogo seguinte, entre Elektra e Clitemnestra, o embate entre o masculino e o feminino dá lugar à psicanálise. No princípio, Clitemnestra vai ter com Elektra como quem vai ao psiquiatra. “Ela fala como um médico”, observa a mãe quando torna a resolução de ir falar com a filha. Clitemnestra tem seus traumas e bloqueios – “Isso me soa tão familiar. É simplesmente como se eu tivesse esquecido há muito, muito tempo”. Em sua terapia com Elektra, vai em busca de um meio de acabar com seus pesadelos. Um de seus sonhos recentes era que estava sendo estrangulada por Orestes. A mãe considera a filha bem instruída e tenta, através dela, obter uma solução para seus sofrimentos. Em Sófocles a situação é bem diferente. Clitemnestra havia, de fato, tido um sonho, mas o de que Agamenon havia ressuscitado. Em seu diálogo com Elektra, nem menciona o sonho. Sem traumas ou sentimento de culpa, a Clitemnestra grega se defende: matara Agamenon como vingança por ele ter oferecido uma das filhas do casal, Ifigênia, em sacrifício para poder ir ajudar seu irmão Menelau em Troia. Essa justificativa nem é citada na ópera, onde a culpa de Clitemnestra é incontestável. Clímax da ópera, a sessão de análise vai se transformando em algo extremamente agressivo: “O que deve sangrar? O seu próprio pescoço quando o caçador a capturar”, diz Elektra. “E eu, eu, eu, eu, eu, que o enviei a você, sou como um cão em seus calcanhares”.

Na estreia em Dresden, foi Ernestine Schumann-Heink a Clitemnestra que ouviu, da histérica Elektra vivida por Annie Krull, as palavras acima. Segundo Walter Panofsky em sua biografia de Richard Strauss, pouco tempo depois, em Nova York, ela concedeu uma entrevista contando como foi a experiência. Sobre a possibilidade de cantar Clitemnestra de novo, foi taxativa: “Nunca mais! Sinceramente, foi horrível. Sobre o palco estávamos como mulheres realmente loucas (…). Strauss nos havia olhado com olhos de mago e no final estávamos verdadeiramente loucas. Tudo isso eu disse ao próprio Strauss. De si e por si mesma sua música enlouquece um homem normal. Assim, por exemplo, começa com uma melodia bela, belíssima, ao longo de uns cinco compassos; então se arrepende de haver escrito algo belo e agradável e introduz uma dissonância que o anula. Strauss não necessita de cantores, pois é sua orquestra que fornece o quadro total, tanto o desenho quanto o colorido”. Ela continua: “Nunca esquecerei aquele olhar daquela Elektra, os olhos brilhantes de animal de rapina e inquietantemente cintilantes que tinha quando se aproximou de mim. Estávamos representando, mas havíamos nos esquecido totalmente disso”. Traumatizada como Clitemnestra, revive seu confronto com Elektra como se ainda estivesse no palco: “Nos transformamos em duas bestas. Seu rosto é uma máscara pétrea, e seus olhos permanecem fixos e olham com espanto. Se lança em minha direção com fúria, seus dedos são garras, salta sobre mim para me estrangular… Sorte que eu não tinha uma faca em minhas mãos, pois lhe teria cravado. Estava fora de juízo”, conta. “Algo similar aconteceu com o público, que assistia ao espetáculo sem respirar. A gente saiu; não podia comer, nem dormir, nem falar. Agora você compreende o que eu sofri com aquela Clitemnestra”.   

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Ernestina Schumann-Heink e Annie Krull como Clitemnestra e Elektra em Dresden, 1909.

Após receber a (falsa) notícia da morte de Orestes, seu irmão que deveria voltar para vingar a morte do pai, Elektra tenta convencer Crisóstemis de que agora elas terão que fazer a execução sozinhas. Essa é, tanto na tragédia grega quanto na ópera, a motivação do segundo diálogo entre as irmãs. A particularidade da ópera é a atitude sedutora, erótica, homossexual e incestuosa, que Elektra tem com a irmã.

Alguns autores também veem erotismo incestuosa no diálogo seguinte, entre Elektra e Orestes. Porém, a nós parece que, após reconhecer o irmão, a atitude de Elektra é terna, maternal, do que erótica. Por um lado, ela se confia ao irmão e, por outro, reconhece nele seu “menino”. A música transmite, de forma inequívoca, essa ternura. A linha de Orestes, antes do reconhecimento, é algo que faz lembrar a do Comendador no Don Giovanni de Mozart. É a volta do pai que estava morto e volta justamente para reparar o assassinato do pai.

Os diálogos de Elektra com seus familiares estão emoldurados externamente pelo tema de Agamenon – a primeira e a última coisa que se ouve na orquestra – e internamente pelo monumental monólogo inicial de Elektra e sua dança final onde temas do monólogo são retomados. A promessa da dança triunfal com que o monólogo inicial termina é, no final, cumprida. Elektra e a orquestra se fundem, a música vem dela. Quanto ao tema de Agamenon, é interessante observar que ele aparece primeiramente apenas na orquestra. Depois, no monólogo de Elektra ela o canta. No final da ópera, após as mortes de Clitemnestra e Egisto, quando a orquestra toca o tema o nome que Crisóstemis canta não é mais o de Agamenon, mas o de Orestes, seu sucessor. É restaurada a lei do pai. Mais que isso: a ópera está delimitada por essa lei patriarcal, está nela compreendida.

Na produção em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, a diretora cênica Livia Sabag optou por encenar Elektra como um drama familiar, doméstico. Em entrevista a João Luiz Sampaio no jornal O Estado de São Paulo, Sabag relacionou o confronto entre Elektra e Clitemnestra com o embate entre mãe e filha em Sonata de Outono, de Ingmar Bergman. Se a opção de não reproduzir a Micenas antiga pode trazer algum desgosto aos puritanos – embora, como já discutimos, o próprio espirito da obra já a tenha distanciado do helenismo –, é bom observar que, como nos conta Le Rider, o próprio Hofmannsthal já havia, na versão de 1903, proposto um cenário não-grego. “Em suas indicações cênicas, Hofmannsthal recomenda aos produtores evitar toda reconstituição arqueológica, ‘essas banalidades antiquadas cuja natureza aborrece mais do que impressiona o público’”. Com sua concepção cênica, Sabag trouxe para mais perto de nós as ideias tratadas na ópera: o papel da mulher na sociedade, a relação entre mãe e filha, os traumas, as traições, os sonhos… O abandono das cenas escuras, fantasmagóricas, aterrorizantes torna a ópera mais palatável, mas também mais profunda: somos transportados para dentro do palco, somos colocados no divã de Elektra. Aliados à boa ideia, estão o belo cenário de Nicolàs Boni e a iluminação de Caetano Vilela.

Das opções de Sabag, o suicídio de Elektra no fim, por enforcamento, foi, sem dúvida, a mais discutível. “Eu carrego o fardo da felicidade e danço diante vocês”, diz Elektra. “A quem é feliz, como nós, só cabe uma coisa: calar e dançar”. Segundo o libreto, “Ela ainda faz alguns passos de dança, no mais intenso triunfo. Elektra colapsa (…). Elektra jaz inerte”. Há quem defenda que nem fica claro se Elektra realmente morre. Porém, em geral a morte de Elektra é bem aceita. Elektra tem de morrer, seu êxtase é grande demais, seu objetivo foi cumprido, a lei do pai foi restaurada e não há mais lugar para ela. Como aponta Kramer, Clitemnestra foi sacrificada por Elektra. O ciclo se fecha com Elektra sendo oferecida por nós. O enforcamento introduz algo artificial, estranho ao drama, que quebra esse estado de êxtase onde tudo acontece de forma quase inevitável.

Os papeis masculinos, secundários, não forem renegados a cantores de segundo time. Como Orestes, tivemos o excelente e renomado Albert Dohmen, com sua voz precisa e profunda, e, no segundo elenco, Johmi Steinberg, que continua ótimo cenicamente embora sua voz apresente claros sinais de desgaste.

Como Crisóstemis, Melanie Diener, com sua voz grande, limpa, precisa, foi a estrela das récitas do segundo elenco. No time da estreia, não há o que reclamar da Crisóstemis de Emily Magee, também uma cantora extremamente competente. Com timbre quente, pesado, e canto imponente, muito bem articulado, Natascha Petrinsky representou, no primeiro elenco, uma Clitemnestra intensa e vocalmente excelente. Susanne Resmark, no segundo elenco, também cumpriu muito bem o seu papel.

Foi no papel título que os dois elencos mais se distanciaram. Eva Johansson, no segundo elenco, tem um timbre agressivo, pungente, animalesco, o que a tornou uma aclamada Elektra. Tem a presença de Elektra e as nuances do papel. É Elektra. Sua interpretação nos penetra, nos angustia. Porém, já apresenta alguma dificuldade para atingir os agudos e em algumas vezes os substitui por gritos, fazendo com que as notas fiquem um pouco imprecisas. Já Catherine Foster, em plena forma, a Brünnhilde do Festival de Bayreuth, talvez nunca venha a ser realmente Elektra: ela é Brünnhilde; como disse Elektra, ela é da estirpe dos deuses. Isso não significa, porém, que não seja capaz de fazer uma boa Elektra – na verdade, uma Elektra magnífica! Com seu belo timbre – até bonito demais para a histérica filha de Agamenon e Clitemnestra –, tem domínio total do papel. Não chega a ser animalesca, mas é envolvente, sabe ser sensível, é comovente, seu sofrimento nos contagia. A impressão que se tem é que o comando da récita está com ela. É o que acontece quando a Brünnhilde assume o papel de Elektra: uma Elektra filha do rei, protagonista absoluta. É uma Elektra que dá vontade de ver uma, duas, três ou até as quatro vezes.

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Catherine Foster e o excelente elenco de Elektra

Como disse Ernestine Schumann-Heink, é a orquestra de Strauss “que fornece o quadro total, tanto o desenho quanto o colorido”. Nesse aspecto, na estreia paulistana a Orquestra Sinfônica Municipal cumpriu burocraticamente o seu papel, tocou as notas, mas não as nuances. Felizmente, nas récitas seguintes a orquestra foi ganhando corpo e a música foi adquirindo vida e ocupando seu importante espaço.

As criadas, serviçais e governanta, bem como o coro lírico, regido por Bruno Facio, desempenharam bastante bem seu curto mas importante e complexo papel. No caso das criadas, suas linhas se confundem e é fundamental que isso aconteça.  

Sem dúvida essa excelente Elektra é uma vitória artística do maestro John Neschling, quem a idealizou e escalou os ótimos, adequados e experientes cantores. Esse evento mostra que o grande argumento que o maestro tem a seu favor está na arte e é através dela que ele deveria ter se expressado, e não pelos textos em redes sociais como Facebook. Para que se justificar com palavras quando se tem o triunfo de Elektra, a música de Strauss e cantores como Catharine Foster?

Só nos resta torcer para que espetáculos com a qualidade dessa Elektra se repitam nas futuras temporadas.

Para quem quiser mais Elektra, é indispensável o filme noir de 1981 de Götz Friedrich, com Leonie Rysanek no papel título e regência de Karl Böhm – um especialista no assunto que morreu pouco tempo depois deter conduzido a Filarmônica de Viena nesse registro histórico.

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