Vez ou outra uma obra de Alexander von Zemlinsky (1871-1942) vem visitar o público paulistano. Tanto a Osesp em 2008, no tempo de John Neschling, como o Theatro Municipal (2012), durante a gestão de Abel Rocha, executaram Uma Tragédia Florentina. Neste ano, a Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência de John Neschling e tendo Paulo Szot e Malin Hartelius como solistas, apresentou a bela Sinfonia Lírica do compositor. Agora chegou a vez de Der Zwerg (O Anão) estrear no Theatro São Pedro. Estreia nacional? Paulo Esper, assessor artístico do Theatro, me informou que a ópera já havia sido apresentada no Rio de Janeiro pela Petrobrás Sinfônica, mas em forma de concerto.
Embora só tenha chegado a São Paulo na semana passada, a obra estreou em Colônia, na Alemanha, em 1922, sob a batuta de Otto Klemperer. O Anão conta a história do encontro entre um anão feio, deformado, um ser diferente, e Dona Clara, Infanta da Espanha, filha de Felipe II e Elizabeth (os mesmos da ópera Don Carlo, de Verdi), que completava 18 anos.
É aniversário da Infanta. Todos os servos estão envolvidos com os preparativos. Dentre os mais ricos e até sagrados presente, segundo Don Estaban, o mordomo, destaca-se um, ao mesmo tempo magnífico e horrível, um presente enviado pelo sultão do oriente: um anão deformado, corcunda, com andar desengonçado, mas reconhecido compositor e cantor. Don Esteban explica que o pobre anão não tinha consciência de seu estado físico, julgava-se um nobre cavaleiro. Portanto, todos os espelhos do palácio deveriam cobertos, era preciso que o tolo continuasse tolo, senão ele podia até morrer.
Com toda pompa, Don Esteban anuncia para a Infanta e as crianças que participavam da celebração de seu aniversário a chegada de um belo músico. O anão, quando aparece, provoca gargalhadas, fez a alegria de todos. Ele, por sua vez, encanta-se com a Infanta. Recusa-se a cantar uma canção alegre: só sabia compor as tristes, as canções de amor. Com uma linha que faz lembrar a dos heróis wagnerianos, o anão declara seu amor pela Infanta e jura-lhe fidelidade, mesmo que por ela venha a morrer. A Infanta resolve falar a sós com o anão e, entre a descoberta do amor do anão, que jura que a Infanta o ama dissimuladamente, e a curiosidade dela em relação ao “brinquedo” com o qual havia sido presenteada, o que se tem é um dueto quase wagneriano. Divertindo-se, após impedir uma tentativa do anão de beijá-la, ela o escolhe como par para dançar a primeira dança e, após a dança, lhe deu uma flor branca.
A Infanta descobre que o anão não tem consciência de seu aspecto. Pede, então, a Ghita, sua dama de companhia, que faça com que ele se olha num espelho. Ghita até tenta obedecer: começa a conversar com o anão sobre a existência dos espelhos. Não tem, porém, coragem de colocá-lo diante de um. Ele lhe conta sobre um “monstro”, um “espírito” que lhe aparece quando ele olha, por exemplo, para a espada. Não tem consciência, porém, de se tratar de si mesmo. Após ela o ter deixado sozinho, acidentalmente um espelho próximo ao trono se descobre e o anão vê o que crê ser o tal espírito. Porém, analisando a imagem e vendo que o “outro” também possui a flor, conclui que se trata dele próprio. Quando a Infanta entra, “diga que não é verdade”, ele implora. Porém, ela confirma a verdade e acrescenta que ele é quase um animal. O anão não resiste e morre, mas com a flor entre os dedos. A Infanta se infantiliza e lamenta que seu brinquedo tenha se quebrado.
A ópera de Zemlimsky baseia-se no conto O Aniversário da Infanta, de Oscar Wilde. Embora o evento e o desfecho sejam os mesmos, o libretto de Georg Klaren é uma adaptação livre do conto. Em Wilde, o anão é um menino selvagem, ligado à natureza, instinto puro, que foi encontrado na floresta e levado para dançar na festa; na ópera é educado, bem vestido e, como Zemlinsky, um compositor reconhecido. Também como Zemlinsky, cuja mãe era turca e judia, o anão da ópera é oriental (um presente do sultão). O conto enfoca o sofrimento e a vida reclusa de Felipe II e a solidão da Infanta que só podia brincar com crianças de fora da vida palaciana no dia do seu aniversário. Em Wilde, a Infanta estava fazendo 12 anos e sua crueldade é típica de crianças inconsequentes. Embora também atire uma flor ao anão logo que ele termina sua dança, ela não tem nenhuma atitude no sentido de seduzi-lo e não há o diálogo entre os dois. No conto os espelhos não são cobertos, não há a preocupação de que o tolo permaneça tolo. Ele se vê após ter decidido entrar no palácio para falar com a Infanta a fim de convidá-la a ir com ele para a floresta. É aí que, ao entrar em um e outro salões, ele descobre o espelho e se assusta com sua imagem. Quando Don Pedro, tio da Infanta, lhe explica que o anão não poderia mais dançar para ela pois seu coração quebrou, ela protesta com a terrível frase que encerra o conto: “Daqui por diante, quero que os meus bobos não tenham coração”.
As diferenças entre os enredos do conto e da ópera são geralmente atribuídos a uma identificação do próprio Zemlinsky com a figura do anão. Duas décadas antes da estreia de O Anão, Zemlinsky havia sido professor de Alma Schindler (1879-1964) — aquela que logo viria a se casar com Mahler e a tornar-se Alma Mahler. Em seu diário ela conta o episódio:
“O universo caótico das minhas composições começou a adquirir um rumo sério através de Alexandre von Zemlinsky, que de imediato reconheceu o meu talento. (…)
Foi quase fatal que eu me apaixonasse por Zemlinsky, um homem horroroso.
Eu o conhecera numa pequena reunião, ambos éramos maldosos nos comentários que fazíamos sobre os presentes. De repente olhamos um para o outro: ‘Se a gente disser o nome de alguém de quem só se possa falar coisas boas, vamos esvaziar um copo!’ E, a uma só voz, dissemos: ‘Mahler!’
Assim começou nosso amor recíproco pois, desde o primeiro instante, não foi amizade. Naquela mesma noite pedi a Zemlinsky que passasse a ser meu professor de composição. Ele ficou feliz, e eu não menos… e teve início para mim um período de aprendizagem muito inflamado, diante do qual tudo e todos passaram a ter importância secundária.
Ele parecia um horrível gnomo: baixinho, sem queixo, desdentado, sempre cheirando a bar, sujo… não obstante, sua força e acuidade intelectuais eram extremamente fascinantes.
(…) Um dia, então, ele resolveu tocar o Tristão para mim; debrucei-me sobre o piano, as pernas tremendo… caímos nos braços um do outro.
(…) Apesar de tudo, minha covardia impedira que tudo se consumasse. (…)
Minha mãe por pouco não morreu de rir quando lhe revelei minha intensão de me casar com Zemlinsky.
(…)
Era músico dos mais sensíveis e um grande mestre. (…) O fato de não se ter transformado no maior mestre de nossa época certamente deve-se à sua constituição franzina. De um rebento doente não pode brotar uma grande árvore, não importa quão precioso ele seja.”
(Alma Mahler: Minha Vida, Ed Martins Fontes)
Não demorou para Alma conhecer Mahler (casou-se com ele em 1902) e abandonar Zemlinsky. Dez anos mais tarde, Mahler já havia até morrido quando Zemlinsky escreveu para o seu amigo Franz Schreker encomendando-lhe o libretto sobre a tragédia de um homem feio. O projeto, porém, precisou de mais dez anos para se concretizar com a adaptação de Klaren a partir do conto de Oscar Wilde.

Klaren também tinha seus motivos para fazer alterações no enredo. Como boa parte da população vienense do início do século XX, ele estava encantado com as teorias do Otto Weininger (1880-1903), de quem viria a publicar uma biografia em 1924. Pretenso filósofo, Weininger conseguiu se popularizar e deixar seu nome gravado na história de Viena após, em 1903, aos 23 anos, publicar Geschlecht und Charakter (Sexo e caráter), um “livro bastante irrefletido”, como disse Freud, e, em seguida, suicidar-se no mesmo apartamento em que Beethoven, para ele o maior gênio de todos os tempos, havia morrido. Judeu, Weininger converteu-se ao cristianismo e tornou-se antissemita.
Para Weininger, a natureza do homem se caracteriza por ser intelectual e espiritual. A mulher, por outro lado, é irracional e sexual e está sempre tentando seduzir o homem. Todos temos elementos masculinos e femininos, embora em diferentes níveis. Para ele, o judeu é uma feminização do homem.
Segundo Sherry D. Lee em seu excelente artigo The Other In The Mirror, Or, Recognizing The Self: Wilde’s And Zemlinsky’s Dwarf (Music and Letters, Vol 91, pp 198-223 , 2010), “A Infanta tornou-se, nas mãos de Klaren, uma mulher weiningeriana, enquanto o anão, aparentemente de modo não intencional, passou a parecer outro dos tipos degenerados de Weininger, o judeu”. Portanto, se a orientalização do anão tornou-o mais próximo de Zemlinsky, também serviu para os ideais weiningerianos de Klaren. Ainda segundo Lee, “O tema mais crucial da estória, a confrontação com e o reconhecimento do ego, é reconfigurado como a confrontação com um outro feminino, representado pela princesa”. É esse embate sexual que, segundo o próprio Klaren em trecho citado por Lee, vem a morte do anão: “Ele morre simplesmente porque ele ama, porque com tal amor ele não pode mais viver”.
Como bem lembrou Lee, é simplista dizer que o anão de Klaren, um cavaleiro educado, nunca tenha visto sua própria imagem — no caso de Wilde, onde o anão é uma criança da floresta, isso é possível. Em seu dueto com Ghita, ele deixa claro que já havia visto um outro. Porém, até então não reconhecera tratar-se, na realidade, de sua própria imagem.
Mais que um espelho da história de vida pessoal de Zemlinsky, portanto, a obra reflete os dramas e ideias da Viena do fin-de-siécle. É, antes de mais nada, como defende Sherry Lee, um drama sobre o fracasso no reconhecimento. Na nossa mentalidade de século XXI, com todas as injustiças sociais, preconceitos e desigualdades com que diariamente nos confrontamos, temos a tendência de interpretar tudo do ponto de vista sociológico. Não parecer ser esse, contudo, o tema central da trama. Uma pessoa que padece de preconceito, por mais que busque se enganar e se proteger, sofre. Nosso anão, ao contrário, expunha-se à zombaria e sentia prazer no fato de rirem dele: julgava uma virtude fazer as pessoas felizes.
Como observou Lee, tanto na ópera, onde existe o confronto do ego com o feminino, quando em Wilde, onde há um confronto com o ego, o episódio do espelho se dá com um confronto com o ‘outro’. Lee aponta, assim, para a relação de ambas as versões com a teoria do estranho, de Freud.
O estranho, para Freud, é um ramo remoto da estética, onde “por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir”. Segundo ele, o estranho relaciona-se “com o que é assustador – com o que provoca medo e horror”. Mesmo que pareça paradoxal, ele conclui que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Ainda em “O Estranho” (1919), Freud observa:
“O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte (…). Originalmente, o ‘duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica negação do poder da morte’, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro ‘duplo’ do corpo. (…) Tais idéias, no entanto, brotaram do solo do amor-próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa está superada, o ‘duplo’ inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte.”
O anão se assusta ao ver a imagem do ‘outro’ no espelho, mesmo antes de reconhecer tratar-se de si próprio. O horror vem do encontro com o estranho, que, como ensinou Freud, é muito familiar. O anão chama seu ‘duplo’ de espírito, fantasma. Reconhece, nesse duplo estranho, a repetição de seus gestos, de sua roupa, do seu entorno… Sobretudo, vê no ‘duplo’ estranho a repetição da flor dada pela Infanta, e aí reconhece tratar-se de si mesmo, de seu ego. Na próxima etapa, o ‘duplo’ inverte seu aspecto: “Eu sou o fantasma”, diz o anão. O ‘duplo’ transforma-se em estranho anunciador da morte.
A música de Zemlinsky alterna momentos de extremo lirismo com outros mais duros. Em geral, momentos de exaltação da Infanta, que revelem a beleza da corte, etc, são líricos e em compasso ternário (o mesmo da valsa, aludindo às danças aristocráticas); já os momentos que se referem ao anão são mais duros e em compasso binário (o mesmo da marcha). Situações contrastantes são marcadas com música contrastante e mudança rítmica. Em alguns momentos, mais notadamente quando Don Esteban conta sobre o anão e, em seguida, na entrada dele, a música tem caráter extremamente descritivo. O staccato da orquestra e o glissando dos violinos simulam precisamente o andar desengonçado do anão.
Os coros são de grande beleza, sobretudo o coro das meninas homenageando a Infanta. É interessante notar que a melodia desse coro se repete durante o dueto entre a Infanta e o anão. É quando ele conta um sonho no qual a salva, ela continua a história, falando sobre as homenagens que ele receberia.
É evidente a influência de Richard Strauss principalmente na orquestração. No canto, a linha à lá Strauss aparece sobretudo no monólogo do anão, após mirar-se no espelho. Na orquestra, também podem ser ouvidos ecos de Mahler. Há uma forte influência de Wagner que se evidencia no uso de temas, no canto heroico com que o anão se apresenta e no dueto entre a Infanta e o anão. A orquestração, porém, é mais leve que a wagneriana.
Em resumo, a composição de Zemlinsky dá seguimento ao romantismo germânico. Infelizmente suas obras e as de tantos outros compositores da mesma linha do início do século XX ficaram bom tempo no esquecimento. Isso porque, com a ascensão do nazismo, sua música foi considerada degenerada pelo III Reich. Seja por ter origem judaica, seja por não se enquadrar aos padrões estéticos populistas do nazismo, grandes compositores desse período foram banidos dos países nazistas e suas músicas ridicularizadas e proibidas.

A produção do Theatro São Pedro teve concepção e direção cênica de William Pereira, que encontrou pelo menos dois desafios. O primeiro, a escassez de recursos financeiros. O segundo é que a ópera contém apenas um ato e, embora seja dividido em três momentos bem distintos, tem música contínua. O primeiro desafio limita os meios; o segundo, as mudanças de cenário. Com criatividade e arte, Pereira foi capaz de vencer seus obstáculos. Com um cenário minimalista, de bom gosto e figurinos bem tratados, fumaça e mudanças na iluminação foram empregadas para modificar o aspecto da cena. De claro, com luz quase branca, a iluminação foi se alterando para mais arroxeada e esfumaçada, como em um anoitecer. Como decoração, serpentinas enroladas, penduradas no teto, simulavam flores pendendo de alguma trepadeira ou arbusto. Intencional ou acidentalmente, faziam lembrar, como bem observou um amigo, das paisagens de Gustav Klimt. A movimentação dessas “flores” também ajudou a modificar o cenário ao longo da ópera. Como elementos de cena foram utilizadas caixas de papelão, aludindo aos presentes que a Infanta recebia. O único porém, talvez, tenha sido o espelho da cena final. Deslocado, meio jogado, pareceu mais uma falta de ideia melhor do que uma boa solução.

Estive presente a duas récitas: na estreia (17/08) e na terceira, no domingo (21/08). Foram bastante distintas no que diz respeito o resultado musical. Na estreia, os cantores estavam inseguros, embora tenham crescido ao longo de pouco mais de uma hora de ópera; o coro ficou um pouco aquém na bela e lírica cena em que a Infanta é homenageada e até a orquestra estava um pouco desequilibrada. No domingo, porém, o que se viu foi uma impressionante evolução. A orquestra, sob a vigorosa e precisa batuta de André Dos Santos, teve um ótimo desempenho e nos brindou com o som redondo de uma orquestra romântica. O coro cumpriu muito bem o seu papel, não só cênica mas também vocalmente, inclusive nos momentos mais líricos.

O grande destaque e a maior evolução entre as duas récitas ficou por conta do tenor Mar Oliveira, membro do elenco estável do São Pedro, que viveu o anão. Cantando boa parte do tempo de joelhos e com um figurino que escondia suas pernas, ao entrar em cena ouvi a pessoa que estava sentada atrás de mim comentar, com espanto: “ele é anão!” Bom ator e bem dirigido, foi muito bem cenicamente. Vocalmente, na estreia sua voz me pareceu um pouco leve e insegura para a linha do anão que, em alguns momentos, é quase a de um heldentenor wagneriano. No domingo, porém, sua voz soou bem mais segura, apoiada e brilhante, adequando-se às não poucas exigências do papel.


Foi, sem dúvida, um grande desafio para os solistas, todos do elenco estável ou da academia do Theatro São Pedro. Em alguns momentos as exigências foram demasiadas para suas vozes ainda em processo de maturação. Porém, de modo geral, o resultado foi bastante positivo e a melhora observada entre a primeira e a terceira récitas é um claro sinal de que, se ainda não estão totalmente prontos e seguros, os cantores da casa têm grande potencial para evoluir.
Para concluir, é louvável que o Theatro São Pedro tenha trazido essa obra tão pouco conhecida do público e que é de extrema beleza musical e significado histórico.
O elenco completo de O Anão foi:
A Infanta: Maria Sole Gallevi
Ghita: Raissa Amaral
Don Esteban: Gustavo Lassen
O Anão: Mar Oliveira
Servas: Raquel Paulin, Marly Montoni e Andreia Souza
Amigas da Infanta: Jéssica Leão, Laís Assunção