En español (Pro Ópera).
En français.

Anja Harteros – Soprano;
Valery Gergiev – Conductor;
Munich Philharmonic.

Wagner – Wesendonck Lieder;
Berg – Sieben frühe Lieder;
Mahler – Rückert-Lieder.

Um novo lançamento de Anja Harteros é sempre um acontecimento para os amantes da arte do canto. Além de tratar de uma das melhores e mais refinadas sopranos da atualidade, seus álbuns, na maioria das vezes gravados ao vivo, são raros e preciosos. Práticas tão comuns em nossos dias como propaganda em redes sociais e lançamentos de CDs com filas de autógrafos não fazem parte do repertório de Harteros. Seu mundo não é o do efêmero, do superficial, mas o da arte mais profunda, do sentimento, da introspecção. Ao musicar Ich bin der Welt abhanden gekommen (Estou perdido para o Mundo), com texto do poeta Friedrich Rückert, Gustav Mahler teria exclamado: “Sou eu!” É bem possível que também Harteros tenha se identificado ao menos com os versos finais do poema: “Morri para a agitação do mundo / E descanso numa região serena / Vivo sozinho no céu, / No meu amor, na minha canção.” Por tudo isso, por contar com um repertório de altíssimo nível, com a impecável regência de Velery Gergiev e com a excelente Filarmônica de Munique, é um álbum para ser apreciado, saboreado.

Contando com três ciclos de canções que vão do romantismo de Richard Wagner ao período de transição romantismo-atonalismo de Alban Berg, passando por Gustav Mahler, o repertório é tão bem escolhido, tão bem combinado, que até parece ter sido um projeto estruturado e gravado em estúdio. No entanto, parecem ser gravações realizadas durante concertos ou talvez ensaios. Conforme informado no encarte, Wesendonck-Lieder, o ciclo de Richard Wagner que abre o CD, foi gravado entre 18 e 21 de janeiro de 2018; Sieben frühe Lieder, de Alban Berg, entre 30 e 31 de janeiro de 2020; Rückert-Lieder, de Mahler, entre 9 e 13 de abril de 2018. Não se ouve qualquer manifestação do público, como aplausos. Se por um lado isso elimina parte do calor do espetáculo ao vivo, por outro não quebra o clima e ressalta a introspecção que perpassa os lieder. Embora a qualidade do som seja bastante boa, é possível ouvir alguns artefatos, possivelmente ruídos da própria orquestra ou do público.

Nos anos de 1856 e 1857 Richard Wagner se dividia entre duas paixões: a elaboração da ópera Tristan und Isolde e Mathilde Wesendonck, esposa de Otto Wsendonck, seu protetor e mecenas. Da união dessas duas paixões e das discussões com Mathilde sobre o libreto da ópera, nasceu o ciclo intitulado Fünf Gedichte für eine Frauenstimme mit Pianoforte Begleitung (Cinco Poemas para voz feminina e acompanhamento de piano), com poemas de Mathilde. Como o título já indica, as canções foram compostas para acompanhamento de piano. Apenas Träume, a última canção, foi orquestrada por Wagner a fim de ser apresentada, com solo de violino, no aniversário de Mathilde. Para as demais canções, a versão executada para Filarmônica de Munique é a do maestro austríaco Felix Mottl, feita em 1890 – portanto, após a morte de Wagner.

Gilles Cantagrel, no Guide de la mélodie et du lied (Ed. Fayard), define Wesendonck-Lieder como “intimes cris du cœur vers l’Isolde tant aimée (…)”. Embora em contexto completamente diferente, a mesma definição vale para Harteros, que ao interpretas as canções já estava amadurecendo sua Isolde e, não fosse a pandemia de COVID, teria estreado no emblemático papel em julho de 2020. O adiamento por um ano fez com que a estreia coincidisse com o lançamento de álbum.

Logo em Der Engel, canção que abre o ciclo e o álbum, no contraste entre a primeira estrofe, mais lírica, e a segunda, já é possível sentir a versatilidade e a meticulosidade do canto de Harteros. Se na primeira estrofe sua voz praticamente flutua, como o anjo descendo em direção ao sol terrestre, na segunda, que faz referência ao pesar de um coração, sua voz adquire uma coloração mais escura e as palavras ganham mais ênfase e maior articulação. Também é digna de nota a delicadeza com que foi feita a intervenção do violoncelo da Filarmônica de Munique em resposta a “Tränenfluten”: é quase possível visualizar o brotar de uma lágrima. Talvez, contudo, o ponto alto dessa canção esteja na forma como foram cantados os versos “Da der Engel niederschwebt / Und es sanft gen Himmel hebt.”, narrando a descida do anjo para socorrer o coração angustiado e levá-lo ao céu. A interpretação, além de extremamente poética e sensível, demonstra uma técnica impecável, que permitiu a emissão de um belo legato, leve e muito bem sustentado, envolto em uma dinâmica finamente esculpida.    

Após vencer com bravura os desafios da frenética roda do tempo em Stehe Still, atingindo com qualidade toda a extensão exigida pela partitura, que conta ainda com inúmeros saltos – e dentre eles um inclemente salto de oitava (Sol) em den Weltenball –, é nas três últimas canções que Harteros entoa os primeiros sons de sua Isolde. Im Treibhaus, que tem como subtítulo “estudo para Tristan und Isolde”, é constituída predominantemente pelo diálogo entre dois temas da ópera. Harteros teve mais uma oportunidade de sustentar com maestria um extenso legato em piano, dessa vez seguido por uma nota longa, como em “Steiget aufwärts süsser Duft”.

Após o ambiente sombrio de Im Treibhaus, em Schmerzen surgem o tema do dia, presente no segundo ato de Tristan und Isolde, e ecos de Seigfried. É o momento de dramaticidade mais extrovertida, em que nos lembramos que Wagner é, acima de tudo, um compositor de ópera e que Harteros é uma grande cantora de ópera. A exaltação dramática é seguida por Träume, que com seus sonhos e sua desafiadora linha melódica, traz o tema do dueto do segundo ato da ópera e demonstra toda a homogeneidade e a delicadeza de que os músicos de Munique e seu maestro, Gergiev, são capazes.  

Alban Berg compôs suas canções de juventude entre 1904 e 1908, época em que era aluno de composição de Arnold Schönberg e estava prestes a se casar com Helene Nahowski. Vinte anos depois, pouco após a estreia de Wozzeck, Berg selecionou sete canções, as orquestrou e dedicou o conjunto a sua esposa. Se estão presentes os elementos bucólicos, a conexão com a natureza, a noite…, temas caros aos lieder românticos, nos poemas selecionados por Berg não há pessimismo nem sofrimento por amor, também constantes nas canções do fin-de-siècle vienense.

Logo na primeira canção, Nacht, é possível sentir a influência de Mahler e de Debussy. A melodia faz lembrar, em muitos momentos, Um Mitternach, do ciclo Rückert-Lieder de Maher, última canção do CD. Também Debussy é quase que explicitamente citado. O colorido orquestral é enriquecido pela voz amadeirada de Harteros que, ao cantar “Gieb acht” timbrando com as madeiras, gera um efeito bastante interessante.

Na segunda canção, Schilflied, nos damos conta, indubitavelmente, do caráter contrapontístico e camerístico da orquestração de Berg. Embora não haja marcante contraste entre os estilos das canções, cada uma tem seu colorido orquestral. Desse modo, Die Nachtngall é apenas para cordas e Im Zimmer, para sopros. Em todas – exceto Die Nachtngall, evidentemente – o contraponto entre algum solo de madeira e a voz é praticamente uma constante.

Todo o belíssimo efeito projetado por Berg se perderia sem um conjunto preciso e transparente, como o formado pela orquestra de Munique e Harteros.

Sem dúvida o ciclo de cinco canções compostas por Mahler em 1901 e 1902 a partir de poemas de Friedrich Rückert é um dos mais belos e amados do repertório romântico. Ao contrário de Kindertotenlieder, também a partir de poemas de Rückert, não se trata de um ciclo temático, mas apenas de um conjunto de canções. Desse modo, a ordem varia de gravação para gravação, conforme as preferências do intérprete. A ordem escolhida por Anja Harteros e Valery Gergiev parte da leveza aromática de Ich atmet’ einen linden Duft!, passa pela oferenda de amor de Mahler a Alma, sua futura esposa, em Liebst du um Schönheit, pelo processo da criação artística com Blicke mir nicht in die Lieder e pelo distanciamento do mundo em Ich bin der Welt abhanden gekommen, até chegar, como uma conclusão, à solene e suplicante Um Mitternacht.

Em Ich atmet’ einen linden Duft!, fluida como “a gentil fragrância do amor” cantada no lied, a voz de Harteros flutua levemente sobre a delicada orquestra, em contraponto com as madeiras. A refinada soprano optou por uma dinâmica sutil e alguns interessantes portamenti (como em “Lindenduft” e em “Im Duft der Linde”). Especialmente nesta canção, é notório o controle que ela tem sobre sua respiração.

À doce fragrância do amor se segue a única canção das cinco que Mahler escreveu em 1902 (as outras quatro são de 1901) e a única que ele não orquestrou, mas manteve na versão para piano e voz. Liebst du um Schönheit foi escrita especialmente para Alma Schindler, com quem ele havia acabado de se casar. A versão orquestral ouvida no CD data de 1916, portanto cinco anos após a morte de Maher, e foi feita por Max Puttmann. É interessante notar a diferença que existe entre as três primeiras estrofes, onde a conclusão é “então não ame” e a quarta (“o ja – mich liebe!”). Além da marcante diferença na forma como é cantada a palavra “liebe”, o canto austero das três primeiras estrofes dá lugar a uma feliz luminosidade, do amor que ama pelo amor, muito bem criada por Harteros, na estrofe final.  

Mais que as qualidades literárias dos poemas de Rückert, foi seu caráter pessoal, aquela sensação de estar lendo algo que nasceu das dores e prazeres cotidianos, que atraiu Maher. Além disso, como já observamos no início desse artigo em relação a Ich bin der Welt abhanden gekommen, uma certa identificação pessoal do próprio Maher com os textos que lia. Desse modo, Mahler se identificou com Liebst du um Schönheit a ponto de a usar não só para declarar seu amor a Alma, mas para lhe dizer que era pelo amor que ele sentia por ela, e não pelo prestígio com que contava, que ela o devia amar. Também colocou seu sentimento como compositor em Blicke mir nicht in die Lieder, onde o compositor é comparado às abelhas que, ao construírem seus alvéolos, não se deixam observar – canção à qual Gergiev imprimiu um andamento que transmitiu a intensa movimentação das abelhas sem prejudicar a articulação do texto.   

Ich bin der Welt abhanden gekommen, a canção que “é” Mahler, pode não parecer, mas é a mais longa das cinco. O tempo, contudo, parece ficar suspenso desde as primeiras notas do belo solo inicial de corne inglês. Seu estilo faz lembrar o adagietto da quinta sinfonia e conta, inda, com uma citação de Tristan und Isolde nos solos primeiro do oboé e, mais tarde, do violino.  À primeira vista, a música pode parecer um tanto melancólica. Porém, a escuta atenta revela um sentimento de profunda paz anterior de quem trocou o tumulto do mundo pelo seu pedaço de céu: seu amor e suas canções. Nesse sentido, é muito feliz o andamento empregado por Gergiev, ao começar e terminar o lied lentamente e imprimir uma velocidade um pouco maior na estrofe central, onde o autor revela seu descolamento do mundo (A mim não importa / Se ele me toma por morto). Também Harteros, em sua interpretação, acentuou esse contraste ao cantar de forma mais luminosa essa estrofe. Na estrofe final da canção, é transmitida uma sensação de paz quase transcendental. Contudo, o repouso só chega na segunda parte do último verso, “in meinem Lied”, após o delicado suspense criado no início do mesmo verso, “In meinem Lieben”, e cantado com paixão por Harteros.   

Com a chegada de Um Mitternacht – hélas! – última canção do CD, o ambiente passa da paz transcendental para a sombria angústia da qual só se consegue escapar com a entrega total: “Entreguei essas forças / Nas Tuas mãos! / Senhor! Sobre a morte e sobre a vida / Velas Tu”. Se às primeiras quatro estrofes Harteros imprime a sombria angústia para a qual parece não haver escapatória, na última ela parece se entregar por completo – a Deus, à arte de Mahler, à música? – coroando uma interpretação magistral com um grand finale.

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