Algo inédito para uma ópera de Leoš Janáček (1854-1928): O Caso Makropulos, sua penúltima ópera, que estreou em dezembro de 1926 em Brno, se inicia com uma longa abertura. Longa para os padrões de Janáček: conta com menos de 6 minutos. Nela são perceptíveis três camadas: um ostinato – técnica abundantemente utilizada pelo compositor – nas cordas e tímpanos, que pode remeter ao tempo, inclemente, passando, ou, também, ao ritmo repetitivo da fala; um tema curso, melódico, com um toque eslavo, que se repete obsessivamente até, no final da abertura, tornar-se extremamente lírico, ao gosto do romantismo tardio da transição entre os séculos XIX e XX, o “agora” da ópera, que bem poderia ter sido composta por Puccini para La Bohème ou por Richard Strauss para O Cavaleiro da Rosa; uma fanfarra distante, com trompetes e percussão, fora do palco, fazendo referência às cortes do início do século XVII. Foi essa fanfarra palaciana fora do palco que causou dúvidas em várias pessoas que assistiam à estreia paulista (não nacional, já foi encenada em 2010 no Rio de Janeiro) da obra na última sexta-feira, 14 de junho, no Theatro São Pedro. O motivo da estranheza foi que a fanfarra estava, de fato, fora do palco, mas em um ambiente lateral bastante próximo à plateia. Desse modo, pelo menos para quem estava no lado esquerdo da plateia, o efeito não foi, como desejado, o de um som mais distante: ao contrário, a fanfarra ficou mais forte que a massa orquestral. Parece razoável supor que a isso tenha ocorrido devido à arquitetura do teatro, provavelmente não havia outro lugar para colocar a fanfarra. De qualquer modo, esse problema prejudicou, sobretudo na abertura, o equilíbrio da Orquestra do Theatro São Pedro, que, sob a batuta do ótimo maestro Ira Levin, de maneira geral, uma ou outra escorregada à parte, desempenhou bastante bem seu papel, com destaque ao ritmo e à dinâmica, fundamentais para a realização dessa obra.

A abertura já nos prepara para o que está por vir: certa urgência, o tempo que está se esgotando; um drama que faz referência a diversos tempos, a uma história que está se desenrolando há séculos; uma personagem na qual a frieza e o tédio típico do romantismo do século XIX convivem com uma atração irresistível, um amor sem o qual Janáček não sabe compor. Como a abertura, também a ópera começa, no primeiro ato, quase falada. No segundo vai se soltando e esquentando cada vez mais, musical e dramaticamente, até atingir o clímax no terceiro ato. Mesmo nos momentos falados, porém, há que se notar a participação da orquestra, não como mera acompanhante, mas dialogando junto. Temas surgem no canto, referindo-se a palavras, frases ou nomes. A orquestra os repete e promovo verdadeiro diálogo fazendo uso deles. Esse efeito fica muito claro, sobretudo, no primeiro ato – o ato que nos apresenta a trama e os temas.

A ópera se baseia na peça homônima – em tcheco Věc Makropulos –, de 1922, do escritor tcheco Karel Čapek (1890-1938) que, em sua peça R.U.R.(1920), criou o termo “robô”. Janáček assistiu à peça no mesmo ano da estreia. Impressionado, transformou-a em ópera. O libreto, do próprio compositor, consiste, de forma geral, na transcrição da peça, com poucos cortes e simplificações. Os cortes mais significativos se encontram no final: Janáček comprimiu os atos três e quatro da peça no terceiro e último ato da ópera.

O título da peça (e da ópera) merece algum comentário. Věc é um termo que não possui uma tradução precisa, serve para “caso”, como normalmente utilizado, uma vez que a trama trata de um conflito jurídico, mas também para “coisa”, sentido no qual é utilizado quando, no último ato, ela aparece. O nome Makropulos vem do grego e é a junção de makro, grande, com poulos, um sobrenome grego usual que significa “filho de”. Tem-se, assim, longevidade e filiação unidas em uma palavra.

Elina Makropulos. Não poderia, pois, haver nome mais apropriado para a bela jovem de mais de 300 anos e que deve tal longevidade a uma fórmula descoberta pelo pai, um médico do Imperador Rodolfo II do Sacro Império Romano-Germânico, da casa dos Habsburgos, que morreu em Praga em 1612.

Rodolfo II se interessava por ciências ocultas, alquimia, astrologia. Em contraste, o início do século XX, quando peça e ópera foram compostas, nas palavras de Caryl Emerson*, “a ciência havia substituído a magia e a tecnologia prometia revolucionar a biologia”. Na peça, que contém pouca ação, há abundante discussão, estilo simpósio, sobre como os valores humanos sobreviveriam a tais mudanças. Hoje, quase um século mais tarde, quando a ópera está em cartaz no Theatro São Pedro, continuamos com questões parecidas. Em relação ao desenvolvimento tecnológico, nos vemos às voltas com a rapidez e largo alcance das comunicações, com a inteligência artificial ameaçando desbancar o trabalho humano em postos nos quais até então nos julgávamos insubstituíveis. Quanto à ciência substituir a magia, porém, estamos indo no sentido oposto ao trilhado nos tempos de Čapek e Janáček: cunhamos o horrível termo anticientificismo e o usamos com orgulho, não com a devida vergonha; damos mais crédito e poder a gurus mágicos do que a cientistas, a opiniões infundadas de mentes vingativas do que a dados e estudos. E no caminho de volta aos tempos de Rodolfo II continuamos nos perguntando como ficarão os valores humanos. Estamos, portanto, diante de uma obra de arte atemporal.

É importante ter em mente que a poção que fez com que a protagonista vivesse 337 anos não era uma poção mágica, milagrosa, mas uma fórmula científica, descoberta por um médico. Ainda citando Emerson, Čapek afirmava que “seu ponto de partida havia sido a hipótese científica formulada recentemente pelo químico [e médico] russo llya Mechnikov, de que a velhice era nada mais que o auto envenenamento do organismo (autointoxikace organismo)”. Foi o antídoto para prevenir esse auto envenenamento, capaz de prolongar a vida indefinidamente, que o pai de Elina Makropulos. havia descoberto.

Na trama, que se passa em Praga em 1922, Elina Makropulos aparece como Emilia Marty, nome que então usava, em um escritório de advocacia que estava representando um descendente seu, Albert Gregor. Um caso centenário: Gregor vs Prus, envolvendo a herança de Josef Ferdinand Prus. O interesse de Elina, que contou tudo o que sabia, inclusive onde estava o testamento do Josef Prus, era reaver o papel com a fórmula de seu pai (a coisa, věc, procurada), que, em 1816, havia deixado com Prus, então seu amante. Os efeitos da fórmula já estavam vencendo, ela estava sentindo o envelhecimento e precisava, com urgência, de nova dose.

No desenrolar da trama, Elina (ou Emilia) se demonstra fria, entediada (dentro da moda da época do romantismo) e desinteressada. Se por um lado sua presença era irresistível, também era destrutiva – homens se destruíam, chegavam a cometer suicídio por causa dela. Elina temia a morte e reclamava que todos morriam, mas também julgava felizes os “mortais”. O que a peça tenta discutir, e que também estava na moda na literatura nos tempos de Capek, são as consequências e a utilidade de uma vida longa ou ilimitada, eventualmente atingida pelo progresso da ciência.

No último ato da peça, majoritariamente cortado por Janáček, após descobrir o segredo de Elina, os homens que a cercam, como bem resume Emerson, “discutem as implicações de sua vida de mais de 300 anos na perspectiva da utopia romântica, da economia malthusiana, do élan vital de Henri Bergso e do elitismo de Nietzsche”. Além disso, debatem quem mereceria ter acesso à coisa (věc).

Na produção em cartaz do São Pedro, saíram-se muito bem todos esses homens que cercaram Elina. Giovanni Tristacci, o primeiro a aparecer no palco como Vítek, o secretário do Dr. Kolenatý, e Luisa Francesconi, que deu vida a sua filha, Krista, uma cantora de ópera que desanima ao tomar contato com o talento e carisma inatingíveis de Elina, reafirmaram o ótimo desempenho, tanto cênico quanto vocal, que têm apresentado nos palcos brasileiros. O mesmo pode ser dito sobre Vinícius Atique, como Dr. Kolenatý, o advogado de Albert Gregor. Eric Herrero, como Gregor, teve a presença cênica adequada e necessária para esse personagem questionador e passional. Michel de Sousa, embora tenha tido um desempenho bastante correto, não conseguiu transmitir plenamente a presença impositiva, a segurança do Barão Prus, o primeiro a suspeitar que todas as E.M. eram a mesma pessoa. Seu filho, Janek, que se suicida por Elina, tem um papel pequeno. Foi o suficiente, porém, para o brilho e a projeção da voz de Daniel Umbelino chamaram a atenção. Dentre tantos novos talentos, é digna de nota a presença cênica de veterano professor: no segundo ato, Mauro Wrona roubou a cena como Hauk-Šendorf, um antigo amante de Elina, já afetado pela senilidade, mas que a reconhece.

Makropulos 4

Todos se saíram bem, mas nessa ópera todos se sucedem, entram e saem de cena, enquanto Elina é quem dá o tom, é a presença determinante: fica o tempo todo no palco e passa pelas mais variadas situações musical e psicologicamente. Tivemos, portanto, muita sorte. Estreando no papel, Eliane Coelho, detentora de toda a experiência necessária para encarnar uma cantora cujo magnetismo vem, em grande parte, da vivência, foi ume Elina arrebatadora. Seu ato final, onde questiona o sentido da vida e aceita a morte, foi impactante, inesquecível. Embora em alguns momentos, sobretudo no primeiro ato, fosse possível perceber certo desgaste em sua voz, a sólida técnica dessa grande artista brasileira, aliado ao seu talento como atriz, fez com que ela superasse todos os desafios.

“Eu sou um cisne”, disse Eliene Coelho, vestida de branco, após a ópera. Se o canto do cisne de Elina, com o qual ela nos brindou, foi arrebatador, a impecável produção de André Heller-Lopes, com os ótimos cenários de Renato Theobaldo, também teve sua parte nisso. Perfeita durante toda a ópera, com os livros e arquivos do escritório do Dr. Kolenatý no primeiro ato, os bastidores do teatro no segundo, sempre fazendo referência à época, já que o tempo é quase um personagem da trama, mas sem tornar-se antiquada, a produção chegou ao seu ápice na cena final do terceiro ato, com um ambiente escuro, uma porta iluminada e Elina, um cisne branco. Um belo e significativo contraste entre luz e sombra, vida e morte. A porta, iluminada, em destaque, parecia lembrar Theodor Adorno: “Não bater à porta”, onde nos alertava quanto à tecnificação, que podia fazer com que uma pessoa se esquecesse de gestos simples, como “o de fechar uma porta de forma suave, cuidadosa e completa” e também daquilo que está atrás da porta, no ambiente. Elina fechou a porta de sua vida. De forma completa? Talvez, a peça deixa em suspenso, a música de Janáček também: não termina com uma cadência.

A ideia do “canto do cisne”, aparte a extrema beleza visual, pode parecer, à primeira vista, lugar comum ou piegas. Porém, no contexto da ópera, é uma ideia e tanto. Pouco antes de morrer, Elina sente-se tocada pela morte e constata que ela não é tão ruim. Diz a Krista: “é igualmente fútil cantar ou calar. Cansa-se de ser boa, cansa-se de ser má. Cansa-se da Terra, cansa-se do céu. E se fica sabendo que sua alma morreu.” Segundo a lenda, o cisne branco não canta, exceto quando está para morrer. Foi, portanto, nesse momento, ao aproximar-se do fim, que Elina, como o cisne, conseguiu realmente dar sentido a seu canto. No segundo ato, Gregor, após assistí-la, havia reclamado da frieza de seu canto; no final da ópera, quanto mais ela se aproximava da morte, mais a música ficava lírica, quente.

Janáček, enquanto compunha Věc Makropulos, escreveu para Kamila Stösslová, sua musa, uma mulher mais jovem e casada por quem tinha uma paixão mal correspondida e de cuja frieza já havia se queixado:

“Uma beleza de trezentos anos de idade – e eternamente jovem – mas apenas com sentimento de esgotamento. Brrr! Fria como gelo! Sobre essa mulher eu devo escrever uma ópera. (…) No fim ela era tão infeliz! Depois disso eu quero que todos gostem dela. Sem amor não serve para mim.”

Heller-Lopes – encantado pela obra desse grande e profundo compositor tcheco –, Ira Levin, Eliane Coelho e toda a equipe no palco e no fosso do São Pedro consequiram nos fizer perdoar e amar Elina – como Janáček à fria e distante Kamila.

Mais uma vez, o São Pedro demonstra que vale a pena fazer um trabalho sério, planejado, pensado.

Makropulos 1
Eliane Coelho como Elina Makropulos.

* Caryl Emerson. “Čapek, Janacek, that Makropulos Thing, and a Word about sacrificed women in 20th-Century Slavic Opera” in “Between Texts, Languages and Cultures”, editado por Craig Cravens at al,

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