Na próxima terça-feira, dia 16/02, será exibida, como parte do Festival Ópera na TelaA Noiva do Czar, ópera de Rimski-Korsakov. Se a exibição de uma ópera de Rimski-Korsakov já não fosse atrativo suficiente para levar os amantes de ópera ao cinema,  o elenco o seria. No fosso, Daniel Barenboim e a orquestra da Staatsoper (Ópera Estatal) de Berlim.  No palco, duas cantoras sensação do momento: a mezzo-soprano georgiana Anita Rachvelishvili e a soprano russa Olga Peretyatko. Para os interessados em montagens polêmicas, é Dmitri Tcherniakov quem assina a produção.

Mr. Tcherniakov, em particular, não decepciona quem espera dele ideias um tanto exóticas. Aqui, a ópera começa com um chat em computador entre membros da Oprichnina, organização criada por Ivan o Terrível, uma espécie de polícia que servia para matar os inimigos do czar, que existiu na Rússia durante o século XVI. No chat comentam a ideia de criar um czar virtual para a Rússia de modo que todos acreditassem que ele era real. Como é observado durante o chat, um czar precisa ter uma noiva. “Vamos achar para ele uma real. Ela poderá não ter muita diversão, mas ela terá muito dinheiro.” Enfim, não haveria czar real, mas deveria haver uma noiva de carne e osso. Na versão moderna de Tcherniakov, a dominação do czar virtual é exercida pela televisão. Há, portanto, uma reflexão sobre a manipulação exercida pela mídia e a tênue linha que separa o real do virtual.

Todo o assunto do chat aparece por escrito durante a abertura da ópera de Rinski-Korsakov que, com sua agitação quase barroca e momentos de extremo lirismo, já demonstra de cara o estilo da ópera. Tcherniakov sabe aproveitar em sua tela de computador projetada no palco as nuances da música. No fim, lírico, com um solo de flauta, os oprichniki internautas acham, em seus arquivos, uma candidata a noiva do czar.

Ivan IV ou Ivan, o Terrível (1530-1584)

Os oprichniki de fato fazem parte do enredo da ópera. É justamente um deles, Grigori Gryasnoi, que abre a cena. Temos, porém, fortes razões para supor que em 1571 os computadores não figuravam entre suas ferramentas de trabalho. A ideia de czar virtual e noiva real, por sua vez, indica que na ópera o czar não aparecerá, apesar de sua fundamental importância no desenrolar da trama. Entre 1547 e 1584, a Rússia foi governada por Ivan IV, conhecido como Ivai Grozny (o Terrível). Ele substituiu o título de Grão-Príncipe, até então adotado, pelo de Czar, uma versão russa de César. No outono de 1571, após  a morte de sua segunda esposa, Ivan procurava uma noiva entre as jovens russas. Decretou, pois, que nenhuma jovem solteira poderia ser prometida em casamento até que a noiva fosse escolhida.  

Ciúmes, traição, suspense… Todos esses ingredientes tão caros ao cinema estão presentes nessa nona ópera de Nikolai Rimski-Korsakov (1844-1908), que estreou em 1899 no Teatro Solodovnikov (ou Sociedade de Ópera Privada) em Moscou.

Retrato de Rimski-Korsakov (Valentin Serov, 1898)

A alguns surpreendeu ver A Noiva do Czar na programação da Staatsoper de Berlim, por ser uma ópera raramente executada. Foi o caso do repórter do canal europeu Mezzo, que, no intervalo da transmissão ao vivo, entrevistou o maestro Daniel Barenboim, diretor da Ópera de Berlim. “Se tocamos Tosca, se surpreendem porque já ouviram cem mil vezes; se tocamos algo que não conhecem ficam surpresos porque é algo muito novo!” reagiu Barenboim, que raras vezes teve a paciência de esperar o fim da pergunta e o microfone ser apontado para ele para começar a falar. “A Noiva do Czar para mim é uma grande ópera, uma grande ópera russa! Rimski-Korsakov não é apenas um compositor que fez belas óperas ou belas peças como a famosa Scheherazade para orquestra. Não se pode esquecer também de sua importância histórica: sem Rimski-Korsakov não teria havido Stravinski, não teria havido A Sagração [da Primavera], não teria havido Petruska, O Pássaro de Fogo, etc etc,” observa o maestro, fazendo referência à ligação próxima que Igor Stravinski teve com Rimski-Korsakov, seu professor. “É realmente um grande personagem e [A Noiva do Czar] é uma obra que eu me pergunto por que é tocada tão raramente no oeste. Na Rússia todos a conhecem e tem sido tocada várias vezes.” Barenboim ainda observa que é uma ópera bastante acessível e que em geral agrada ao público.  

Desde a estreia A Noiva do Czar teve recepção bastante diferente no oriente e no ocidente. Com momentos de verdadeiro bel canto, um sexteto (no terceiro ato) no estilo do quarteto de Rigoletto e do sexteto de Lucia di Lammermoor (que Rimski-Korsakov admirava) e até uma cena de loucura para Donizetti nenhum botar defeito, foi considerada, pela crítica inglesa Rosa Newmarch (1857-1940), a ópera mais italiana de Rimski-Korsakov. Para o compositor russo Boris Asafyev (1884-1949), era um grande drama e um “hino com cores trágicas à beleza ética da alma da mulher russa.” Para ele, era “rica, russa e emocionalmente saturada do ponto de vista melódico” de modo “muito diferente do brilho do bel canto italiano.”

“Quanto ao italianismo,” defende-se Rimski-Korsakov, “eu lamento que em russo essa palavra soe como um censura se não como abuso (…). A melodia italiana é tão cantável que com frequência qualificamos uma escrita musical cantável de italianismo, independente do estilo da melodia. É inquestionável que muitas banalidades podem ser encontradas com os italianos, mas certamente também há banalidade suficiente com os franceses e alemães. Temos que aproveitar as coisas boas dos italianos, da mesma forma que aproveitamos dos alemães e dos outros.” (trecho retirado de Rutger Helmers, Not Russian Enough? – Nationalism and Cosmopolitanism in Nineteenth-Century Russian Opera)

Voltando a Barenboim, ele explica que, diferentemente do repertório alemão ou do italiano, que possuem uma linguagem sonora bem definida, no repertório russo as coisas não funcionam assim. “Toda a cultura russa do século XIX estava muito influenciada pela Alemanha e pela França (…). Ao lado disso havia uma especie de folclore eslavo. Aí está a grande dificuldade em Rimski-Korsakov (…).” De fato, pode-se observar que, em A Noiva do Czar, ao lado dos momentos de ‘italianismo’ estão as canções em estilo folclórico cantadas, em geral, pelo coro — ou seja, envolvendo a coletividade.

Barenboim completa dizendo que quando sentimos que algum músico tem muita intensidade, dizemos que nos transmite um certo calor ardente. “Mas só pode esquentar quando temos, também, o gelo (…). Na música russa também é assim: é preciso sentir o frio. Há passagens nessa música em que eu gostaria que o público sentisse tanto frio que da próxima vez trouxesse um mantô (…).” Barenboim conta que aprendeu isso com o grande maestro russo Evgeny Mravinski: quando assistiu, cerca de cinquenta anos atrás, à Quinta Sinfonia de Tchaikovsky sob a regência de Mravinsky, sentiu frio e, depois, um intenso calor.

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Daniel Barenbom

Vamos à trama da ópera. Grigori Gryaznoy está perdidamente apaixonado por Marfa Vasilevna Sobakina. Porém, seu pai, o comerciante Vasily Stepanovich Sobakin, já prometera sua mão para Ivan Sergeyevich Likov, um boiardo que a ama desde a infância e é por ela correspondido. Disso lamenta-se Grigori, que está para receber seus convidados para um banquete. Dentre os convidados estava Yelisey Bomeliy, o “alemão”, um médico alquimista, pelo qual Grigori espera ansiosamente. No início do banquete, uma surpreendente fuga, num estilo que bem podia ser um Glória de alguma missa, enquanto os convidados celebram o encontro e cantam um ditado: “uma palavra amável é mais doce que o mel.” Após louvores ao czar entra Lyubasha, a amante de Grigori (a excelente Anita Rachvelishvili). Musicalmente o ambiente se transforma, torna-se mais grave. Ela é convidada a cantar uma canção triste e o faz. Canta, a cappella, um lamento que denuncia a situação das moças russas ao narrar de forma quase fúnebre a apresentação de uma jovem a seu noivo velho. Todos se vão, mas Grigori retém Bomeliy e lhe pede alguma poção mágica para ajudar ‘a um amigo’, loucamente enamorado e não correspondido. Bomeliy diz que existe um pó que deve ser  misturado à bebida da mulher amada. Lyubasha, escondida, ouve a conversa. Tem início um trio que, se fosse uma missa, seria o Kyrie. Lyubasha percebe que Grigori não a ama mais e suplica, em vão, por seu amor.

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Trio: Anita Rachvelishvili, Johannes Martin Kränzle e Stephan Rügamer respectivamente como Lyubasha, Grigori e Bomeliy

 

Logo no início do segundo ato tem lugar um dos pontos altos dessa ópera: a sublime Olga Peretyatko, na pele da jovem Marfa, em uma melodia lírica, pastoral, quase um bel canto, relembra sua infância em Novgorod quando era vizinha do jovem Ivan Sergeyevich Likov, seu Vânia, por quem está apaixonada e com quem deverá se casar.

 

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Olga Peretyatko como Marfa
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Anatoli Kotscherga, em excelente atuação como Sobakin, o pai de Marfa, prometendo a mão da filha a Likov (Pavel Cermoch) assim que o Czar escolher a noiva.

 

Quanto a Tcherniakov, apesar de certas dificuldade que possamos ter em conciliar a cena que se vê com a história, é justo reconhecer seus méritos. Suas produções são extremamente bem feitas e elaboradas e, sobretudo, a sua direção de atores é um primor. 

Embora todo o elenco tenha sido de nível bastante elevado, Anita Rachvelishvili parece ter sido a grande estrela da noite. Além da maestria com que enfrentou o canto a cappella do primeiro ato, um desafio para o cantor que sempre corre o risco de sair um pouquinho do tom, sua atuação foi impecável vocal e cenicamente. Após a ópera, foi dela a maior ovação do público. Além dela, não só os russos Olga Peretyatko e Anatoli Kotscherga merecem destaque mas, pelo menos para ouvidos não russos, a atuação do barítono alemão Johannes Martin Kränzle, com o cinismo que se pode esperar de Grigori, também foi memorável.

Para os interessados em conhecer mais sobre Olga Peretyatko está disponível na internet uma entrevista que ela concedeu ao diretor cênico Walter Neiva, em seu programa Seguindo a Ópera, transmitido pela Rádio Cultura FM. Quem quiser ouvir, basta clicar aqui. Também há um programa sobre Anita Rachvelishvili.

Caso ainda precise avisar, é imperdível!

Marfa Vasilevna Sobakina

Informações:

A Noiva do Czar (Царская невеста)

Compositor: Nikolai Rimski-Korsakov
Libretto: Ilia Tyumenev e Rimski-Korsakov

Orquestra da Staatsoper de Berlim.
Regência: Daniel Barenboim.
Direção cênica: Dmitri Tcherniakov.

Elenco:
Olga Peretyatko (Marfa),
Anita Rachvelishvili (Lyubasha),
Anatoli Kotscherga (Sobakin),
Johannes Martin Kränzle (Grigori Gryaznoy),
Pavel Cernoch (Ivan Likov),
Stephan Rügamer (Bomelius).

Gravado em 08 de outubro de 2013.

Duração: Aproximadamente 2h 45min
(incluído o intervalo de 10 min.)

Datas e Horários:

16/02 – terça-feira
19hs – Espaço Itaú Frei Caneca
19:10 – CineARTE – Sala 2 (Conjunto Nacional)

23/02 – terça-feira (Reapresentação).
19:10 – CineARTE – Sala 2 (Conjunto Nacional)
19:20 – Espaço Itaú Frei Caneca (Sala 6)

Mais informações atualizadas sobre o festival, os títulos e a programação podem ser obtidas no site oficial do festival (http://www.operanatela.com), em sua página no Facebook e no site do Espaço Itaú de Cinemas.

 

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2 respostas para “Ópera na Tela: A Noiva do Czar (16 e 23 de fevereiro de 2016)”

  1. Avatar de ITACY KROEHNE

    Querida Fabiana, apenas hoje me propus a ler seu artigo pois, já estamos mais perto do dia da apresentação da ópera.
    Você já sabe o quanto te admiro por nos trazer sempre informes tão interessantes referentes a cada
    ópera mas, desta vez você se superou. Que bom fazer parte deste seu ciclo de amigas e ser uma das felizes agraciadas.
    Muito obrigada, Itacy

    1. Itacy,
      Bondade sua! Muito obrigada pelas suas palavras.
      Espero que o meu texto te ajude a aproveitar melhor a ópera.
      Um grande beijo,
      Fabiana.

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