Começou bem — muito bem! — a temporada lírica paulistana deste ano. Foi na noite de quarta-feira, 02 de março de 2016, com o Don Quichotte, de Jules Massenet, no Theatro São Pedro, com casa cheia e todas as récitas esgotadas. Além de uma bela abertura de temporada, foi o retorno triunfal de Don Quichotte a São Paulo após 90 anos. Merecia récitas extras.
A seguir, discutiremos alguns aspectos da obra de Cervantes, da de Massenet, e da ótima produção em cartaz no São Pedro.
1. Miguel de Cervantes: Don Quijote (1605 e 1615).
Amigo leitor, pode ser que você nunca tenha lido os 126 capítulos do célebre e fascinante livro de Miguel de Cervantes (1547-1616), mas é pouco provável que nunca tenha ouvido falar no cavaleiro andante Don Quijote de la Mancha, em sua amada Dulcinea del Toboso e em seu fiel escudeiro Sancho Panza. Não é exagero dizer que essas figuras se tornaram mais populares que Cervantes, seu criador.
A história de Don Quijote foi publicada em duas partes, em 1605 e 1615, sob os títulos de El Ingenioso Hidalgo Don Qvixote De La Mancha e Segunda Parte Del Ingenioso Cavallero Don Qvixote De La Mancha, respectivamente. Ingenioso, aqui, está mais para inteligente, espirituoso, do que engenhoso. Hidalgo, fidalgo, é “filho de algo”, um descendente de alguém que foi da nobreza e, portanto, guerreiro que defendia o rei. No título da segunda parte, Don Quijote já foi promovido de fidalgo para cavaleiro. Quanto ao nome próprio, o ‘x’ na grafia do século XVII tem o som que hoje é próximo ao ‘j’ em espanhol (em português, o rr), e não ao do nosso ‘x’. É por isso que em espanhol moderno escreve-se “Don Quijote”. É interessante notar que no próprio nome Don Quijote há uma contradição: ao ‘Don‘ que enobrece segue-se um pejorativo sufixo ‘-ote‘, como usaríamos, por exemplo, em velhote.
Os livros de cavalaria foram os primeiros best-sellers: surgiram na França e contavam lendas britânicas, como as do Rei Artur. Os cavaleiros eram heróis errantes, defensores da justiça. Na época de Cervantes, os romances de cavalaria eram bastante difundidos na Espanha, como forma de entretenimento. Sua qualidade, porém, era questionada. É demasiado simplista afirmar que foi contra os livros de cavalaria que Cervantes escreveu aquele que viria a se tornar o maior livro do gênero. Cervantes, em Don Quijote, trata de forma irônica tanto delatores quanto defensores do gênero e até as próprias histórias narradas nos livros. A ironia de Cervantes já se faz notar nas primeiras palavras de seu prólogo: “Desocupado leitor…”
Cervantes conta que em uma aldeia da Mancha (centro da Espanha), “de cujo nome não quero me lembrar”, vivia Alonso Quijano, um fidalgo de já seus cinquenta anos (idade de Cervantes, avançada para a época), verdadeiramente apaixonado por livros de cavalaria. Era o possuidor de uma vasta biblioteca dominada pelo gênero, passava as noites lendo: “De pouco dormir e de tanto ler se lhe cegou o cérebro.” Sua obsessão chegou a um ponto que certo dia decidiu tornar-se cavaleiro. Pegou uma velha armadura que pertencera a um seu antepassado, improvisou uma viseira, nomeou seu cavalo Rocinante, chamou o simplório Sancho Panza para ser seu escudeiro — a quem prometeu que faria governador de uma ilha — e saiu pelo mundo em busca de aventura.

É parte dos romances de cavalaria que um cavaleiro precisa ter uma amada para dedicar seus grandes feitos e seus poemas. Segundo o próprio Don Quijote, “não pode ser que haja cavaleiro andante sem dama. Porque tão próprio e natural lhes é ser enamorados quanto ao céu ter estrelas.” E completa dizendo que caso surja um cavaleiro sem amada, que “não seja tido por legítimo cavaleiro, mas por bastardo.” O amor cortês, neoíplatônico, dos trovadores que elegem uma donzela para endeusar e declarar seus mais ardentes versos, é típico da cavalaria. “Todos os cavaleiros andantes do passado eram grandes trovadores e grandes músicos. Essas duas habilidades — ou graças, para dizer melhor — são anexas aos enamorados andantes,” ensina-nos Don Quijote. Para sua dama, escolheu Aldonza Lorenzo, “uma camponesa de muito boa aparência por quem ele andou apaixonado um tempo, embora se acredite que ela jamais tenha sabido disso nem o tenha deixado provar de sua formosura.” Quanto ao nome que daria à “senhora de seus pensamentos”, “procurando um nome que não destoasse muito do seu e insinuasse ou parecesse nome de princesa e grande senhora, veio a chamá-la ‘Dulcinea del Toboso’, porque era natural de El Toboso: nome, em sua opinião, musical e raro e significativo, como todos os demais que ele tinha posto em si e em suas coisas.” Dulcinea vem de dulce, doce. Ao transformar Aldonza em Dulcinea, Don Quijote nos lembra, no melhor estilo neoplatônico, do amador que cria a coisa amada, projetando nela os seus desejos. Ele não precisa mais de Aldonza para ter sua amada Dulcinea.
Assim Don Quijote tornou-se cavaleiro ou, mais precisamente, retirou-se de sua época, de seu tempo, e, transportando-se para o tempo e o cenário de seus romances prediletos, passou e viver segundo seus sonhos e fantasias, misturou sonho e realidade. Assim a simples estalagem pela qual passou tornou-se, para ele, um castelo que o hospedaria; mulheres “dessas que chamam da vida”, presentes nas estalagens, tornavam-se donzelas; uma bacia dourada de barbeiro virou um elmo; os moinhos de vento, sinais da modernidade na região da Mancha de 1600, eram gigantes a serem combatidos. E ganha, de Sancho Panza, o apelido de “Cavaleiro da Triste Figura.“

É interessante a relação entre Don Quijote e Sancho Panza. Se por um lado Sancho, um homem simples, é a voz da realidade, por outro ele não ousa duvidar de seu letrado amo. Acaba, desse modo, deixando-se levar pelas fantasias cavaleirescas e acreditando na possibilidade de uma ascensão social em virtude dos feitos de Don Quijote. Quando Don Quijote vê os moinhos e parte para combater os gigantes, Sancho diz que são moinhos; quando Don Quijote pega o “elmo” que pertencia ao barbeiro, Sancho diz que é uma bacia. Porém, Sancho acredita que Don Quijote poderá se casar com uma princesa ou fazer dele o governador de uma ilha. Portanto, embora de modo geral se possa dizer que Sancho tem a perspectiva da realidade e Don Quijote a da fantasia em relação aos elementos da vida quotidiana, no aspecto social, na expectativa de melhorar de vida, Sancho está tão iludido e tão possuído por seus sonhos quanto Don Quijote. A mobilidade social era um sonho, um delírio.
O dilema da distinção entre realidade e sonho, tão presente no romance de Cervantes, é típico do barroco. O mais emblemático livro sobre esse tema é a peça teatral La Vida Es Sueño, de Calderón de la Barca (1600-1681). O conceito vem do mito da caverna, exposto por Platão na República, segundo o qual enquanto temos a matéria, não vivemos na luz, mas no mundo das sombras, de ilusão: é como se estivéssemos numa caverna, onde só vemos as sombras na parede, as projeções da realidade, e não a realidade em si.
Além da dualidade sonho/realidade, a honestidade e veracidade dos textos e traduções e, em certo sentido, apesar da religiosidade de Cervantes, até dos textos sagrados (sobretudo de sua tradução), também é questionada em Don Quijote. Numa época em que a imprensa havia acabado de surgir, Cervantes discute a função dos livros como mero entretenimento para desocupados ou portadores de lições morais, de histórias verdadeiras. A autenticidade de traduções também é questionada. Ele se refere à história de Don Quijote como um manuscrito encontrado e traduzido do árabe. A “preocupação” em contar a verdade estende-se por todo o livro. A ironia do autor chega ao ponto de, no sexto capítulo da segunda parte, considerar apócrifa uma fala de Sancho por a considerar elaborada em demasia para o simplório escudeiro.
Logo no início da segunda parte, escrita após o sucesso da primeira, antes de sair novamente em busca de aventuras, Don Quijote e Sancho tomam conhecimento de que suas aventuras foram fielmente escritas e publicadas. A única coisa que desagrada Don Quijote é saber que foi um mouro, e não um cristão, quem as escreveu. É mais uma vez a literatura tratando da literatura, o livro dentro do livro. Com vários cuentos e histórias paralelas, sobretudo na primeira parte, algumas até bastante longas, Don Quijote é um livro sobre livros, um livro sobre leitura.
Uma característica das duas partes da obra é que frequentemente as histórias que determinados personagens estão contando são interrompidas. Isso remete à técnica utilizada em interrogatórios, de interromper a narração da testemunha, quebrando a linha de raciocínio dela, a fim de testar a veracidade do que está testemunhando. Essa é mais uma característica reforçando que Don Quijote é um livro que nos convida a questionar o que estamos lendo.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a primeira parte de Don Quijote tende para o estilo renascentista enquanto a segunda se aproxima mais do barroco. Na primeira parte, embora haja elementos do barroco — como o dilema sonho/realidade –, prevalecem características renascentistas como o amor cortês, a solução favorável que quase todos os conflitos, um ambiente campestre, pastoral, etc. Já na segunda parte, o ambiente é mais urbano, os personagens se tornam mais complexos, os conflitos estão mais emaranhados, a confusão entre sonho e realidade torna-se explícita e constante, os contrastes claro-escuro se intensificam, e ganha espaço o desengano, quando a realidade vai se revelando a Don Quijote. A segunda parte é uma jornada rumo à morte. Porém, como observou José Saramago no documentário “Cervantes y la leyenda de Don Quijote“, do Canal Historia, antes de morrer o protagonista volta a ser Alonso Quijano. Quem morre é Quijano, e não Don Quijote.
2. Jules Massenet: Don Quichotte (1910)
“Oui, peut-être est-il fou…
mais…
c’est un fou sublime!”
Don Quichotte, de Jules Massenet (1848-1912), com libretto de Henri Cain, estreou em Monte-Carlo, em 1910. A ópera não se baseia diretamente na obra de Cervantes, mas na peça de teatro Le Chevalier à la Longue Figure, de Jacques Le Lorrain (1856-1904). Não tivemos acesso à peça de Le Lorrain. Portanto, não sabemos o quão fiel Henri Cain foi ao seu original. Porém, pouco importa, uma vez que o que nos interessa aqui é a comparação direta entre a ópera de Massenet e a obra prima de Cervantes.
Don Quichotte tem uma característica que a torna um raro exemplar no repertório operístico. Seu trio de protagonistas, Dulcinée, Don Quichotte e Sancho Panza, é formado, respectivamente, por mezzo-soprano, baixo e barítono. Tenor e soprano, usualmente protagonistas das óperas, possuem papéis pequenos, secundários.
Ao contrário do que costuma dizer o senso comum, a ópera não é uma redução do longo livro, que toma algumas aventuras de Don Quijote. Trata-se, na verdade, de uma adaptação que só utiliza os personagens principais (ou, mais precisamente, seus nomes) e o famoso episódio dos moinhos de vento.
No início da ópera, quando Don Quichotte e Sancho Panza aparecem, são recebidos, entre “vivas” e zombaria, como figuras conhecidas. Esse início remete à segunda parte de Don Quijote que, conforme já mencionamos acima, se passa predominantemente em ambiente urbano e utiliza literariamente o sucesso da primeira parte. O Cavaleiro da Triste Figura é em Le Lorrain e Massenet chamado de Chevalier de la Longue Figure, ou do rosto alongado.
Se a primeira parte de Don Quijote se enquadra mais nos paradigmas da renascença e a segunda nos do barroco, a ópera de Massenet transporta o cavaleiro errante para o romantismo. Como bom herói romântico, Don Quichotte está fora da sociedade e, no princípio, é estranho a ela. Embora tenha momentos de exaltação de suas supostas glórias, tem momentos de introspecção, melancolia. Mais importante ainda: o foco está no caráter do cavaleiro — em sua moralidade, seu idealismo, sua coragem –, que na ópera chega a ser identificado com a figura de Cristo. É o louco que acredita na bondade, no amor. É, como disse quando estava em meio aos bandidos, aquele que combate o mal, ama os pobres e não odeia nem os bandidos. Capaz de morrer por amor, é o típico herói romântico: aos olhos da sociedade, um louco — como definiu Dulcinée na citação acima, um louco sublime. Embora o Don Quijote de Cervantes procure ser um homem religioso, tenha libertado bandidos, não seja apegado ao dinheiro e tenha um caráter reto, ele é mais um sonhador que vive em uma sociedade que não existe do que um santo capaz de “exalar divindade” e comover bandidos.
Antes de se encontrar com os bandidos, Don Quichotte vê o moinho de vento e julga ser um gigante. Durante a suposta luta, ele canta “Géant, géant…” (http://www.youtube.com/watch?v=uxJNmH6oUMU), no intervalo de quarta, como cantou Siegfried, o mais célebre herói romântico das óperas de Wagner, ao forjar sua espada Notung: https://www.youtube.com/watch?v=BKKKjiWBZ9w. É evidente a semelhança entre os dois heróis em ação, é explícita a citação.

Em Cervantes, a pura Dulcinea não aparece: ela vive na idealização de seu cavaleiro trovador. Na ópera, ela é uma sofisticada cortesã que nos faz lembrar da famosa cortesã do século XIX: Marguerite Gautier, protagonista de La Dame aux Camélias (1848), de Alexandre Dumas fils, que viria a ser chamada de Violetta Valéry em La Traviata (1853), de Verdi. Ao contrário de Marguerite ou Violetta, Dulcinée nem cogitou em trocar sua vida de liberdade e sofisticação por um amor. Como Violetta, ela se preocupa com a idade que levará sua beleza majestosa., com o fim do tempo do amor.
Enquanto em Cervantes Don Quijote cultiva um amor platônico por Dulcinea, que dispensa a própria existência real da amada, o amor de Don Quichotte de Massenet é aquele amor típico do romantismo, que só pode se consumar com a morte. Em Cervantes, na segunda parte, quando, em Toboso, Don Quijote avista um imponente prédio que julga ser o castelo de sua “deusa” Dulcinea, ao se aproximar percebe tratar-se, na verdade, de uma igreja. Em Massenet, é no quinto ato, quando Don Quichotte está morrendo, que seu encontro com Dulcinée tem bom êxito. É aí que ele a vê entre as estrelas, sua luz se confunde com a dos astros, ela o espera:
Dulcinée! avec l’astre éclatant
Elle s’est confondue…
C’est bien elle!
La lumière, l’amour, la jeunesse…
Elle! Vers qui je vais? qui me fait signe? qui m’attend!
As estrelas, caras ao romantismo, têm marcante presença na ópera. Na ária em que Don Quichotte exalta Dulcinée, ele fala das estrelas. No quinto ato, quando está morrendo, lá estão as estrelas. Don Quichotte as contempla e ouve, ao longe, a voz de Dulcinée anunciando que o tempo do amor se acabou: “Ah! le temps d’amour a fui…” Nesse ponto, há que se notar a semelhança com “Lucevan le Stelle“, do também último ato de Tosca (1900), de Puccini, quando Cavaradossi lamenta a morte que se aproxima e o tempo que se acaba: l’ora è fuggita. A semelhança vai além da presença das estrelas e da expectativa da morte: está também na orquestra, nos primeiros acordes, na linha descendente.
Sancho Panza é o único personagem que foi transportado sem grandes alterações do livro para a ópera. Em ambas as obras o simplório escudeiro, que gosta de boa comida e boa bebida, tem, até certo ponto, a perspectiva da realidade, mas admira Don Quijote, seu superior social e intelectualmente, e o nobre caráter, a pureza, de Don Quichotte, seu “mestre adorado”.

Comentando sobre as diferenças entre Quijote e Quichotte, Jorge Takla, diretor cênico da produção em cartaz do São Pedro, em entrevista concedida a João Luiz Sampaio (O Estado de São Paulo, 02 de março de 2016, pág. C1), observou: “Se você lê simplesmente o libretto, percebe claramente as diferenças com relação ao original. Mas, quando ouve a música, enxerga justamente as semelhanças entre o original e a adaptação.” De fato, vários aspectos que comentamos acima, quando tratávamos do Quijote, podem ser encontrados na música e na combinação música-texto. As interrupções, tão frequentes no texto de Cervantes, também estão presentes em Massenet. A bela e principal ária de Don Quichotte, onde canta que quando surgem as estrelas faz uma prece aos olhos de Dulcinée, é interrompida, não é concluída. Mudanças de caráter, como o claro-escuro do barroco, foram incorporadas à música romântica de Massenet. O claro-escuro, aliás, foi explorado com inteligência por Jorge Takla. Quando surge Dulcinée, seu vestido branco, brilhante, iluminado, ressalta sobre o fundo escuro. Em seguida, Sancho, Don Quichotte e seus cavalos, brancos, também se salientam em relação ao fundo e aos demais personagens. No quarto ato, Dulcinée está de preto e, com ela, contrasta o branco da roupa de Don Quichotte. Ao fim de cada cena, o elenco ficava congelado por alguns momentos, formando como que belos quadros.
Jorge Takla, dirigindo o baixo americano Gregory Reinhart, que tem o physique du role perfeito para o papel título, transmitiu os vários aspectos da personalidade de Don Quichotte e as transformações por que foi passando. No primeiro ato, o Don Quichotte recebido como herói entra imponente, no seu cavalo Rocinante. Contemplativo, após beijar a mão de Dulcinée, permanece ajoelhado, como se sua mão ainda estivesse entre as dele, saboreando o momento. No segundo ato, o Don Quichotte poeta, trovador, sonhador, montado em seu cavalo, segura um caderninho onde anota seus versos. No terceiro ato, o Don Quichotte suplicante e piedoso mostra sua aparência serena. No quarto ato, o Don Quichotte desiludido por uma Dulcinée que não é como ele imaginava e não quer ser sua esposa, abatido, se ampara em Sancho, fica sentado, inclinado, não consegue mais se colocar de pé. É o desengano. No último ato, como em Cervantes, Takla não deixa Don Quichotte morrer. Quando se abram as cortinas, o protagonista está com um pijama branco que, juntamente com o brilho das estrelas, é o claro sobre o fundo escuro. Aí morre Alonso Quijana. Don Quichotte, como Don Quijote, não morre.
Gregory Reinhart já é conhecido do público paulistano. Esteve no Theatro Municipal no Anel do Nibelumgo, de Wagner, em 2011 como Hunding (Die Walküre) e em 2012 como Hagen (Götterdämmerung). Embora seja americano, o baixo mora na França, o que dá maior fluência e naturalidade ao seu francês. A temporada do São Pedro é sua estreia como Don Quichotte. Além do physique du role, ele também tem a voz de Don Quichotte! Sua voz forte, mas doce e aveludada e sua sensível interpretação deram vida, profundidade, ao personagem. Nos gestos e nas expressões de Reinhart estavam todas as nuances dessa encantadora personalidade.
Não é a primeira vez que a mezzo-soprano Luisa Francesconi, que vem ganhando cada vez mais importância na cena lírica brasileira, é protagonista de uma ópera francesa com tema espanhol. Em 2014, foi Carmen no Theatro Municipal de São Paulo. Como Dulcinée, seu canto e sua atuação cênica foram perfeitos. Soube encarnar a Dulcinée sensual, flamenca, rodeada por admiradores, mas sensível, sincera, que se comove com a pureza do amor de Don Quichotte, um amor até então por ela desconhecido.
No quarto ato, após Dulcinée dizer-lhe que não vai se casar, Don Quichotte, conforme já mencionamos, diz que a resposta é fatal e fica abatido. Segue-se um belo dueto, onde ela diz a Don Quichotte que, agora que já sabe que ela é impura (o desengano!), a insulte, mas não os deixe. Ele abençoa a sinceridade da (ex) musa (o herói romântico). Francesconi e Reinhart interpretaram o dueto com extrema beleza, digna de nota.
Como Sancho Panza, o barítono Eduardo Amir cativou o público. Talvez a dele seja a parte mais complexa cenicamente. Sancho é ingênuo, engraçado, mas não pode ser exageradamente bufão. No segundo ato fica nítida a diferença entre Don Quichotte e Sancho também no que diz respeito a linha melódica. Enquanto o canto de Don Quichotte é predominantemente lírico, o de Sancho é mais rude, quase falado. Jorge Takla, em sua montagem, explora esse contraste: enquanto Sancho, em sua ária, reclamava das mulheres, Don Quichotte nem ouvia, estava com seu caderninho, compondo suas poesias para Dulcinée. Como em Cervantes, a personalidade do escudeiro vai se modificando e se tornando mais grave; seu canto, mais lírico. O sorriso quase maroto com que Eduardo Amir começou a récita foi dando lugar a uma expressão mais séria.

Além da maestria da direção e concepção cênica de Jorge Takla, o bom gosto e a beleza dos cenários de Nicolas Boni saltam aos olhos. Como pano de boca, foi utilizada a gravura de Gustave Doré (1832-1883) para o livro de Cervantes, reproduzida acima, que ilustra Don Quijote lendo os livros de cavalaria e envolvido em seus sonhos. Os belos painéis do cenário, que criaram a ambientação de uma antiga cidade espanhola, foram inspieraos nas ilustrações de Doré. Sendo as ilustrações de meados do século XIX, criou-se, assim, uma ponte entre o Don Quijote de Cervantes e o período em que viveu Massenet.
Para essa ópera francesa que se passa na Espanha, Massenet compôs música espanhola, com direito a dança flamenca. Sob a direção da célebre coreógrafa espanhola Nuria Castejón, o grupo de dança flamenca abrilhantou a noite. A Orquestra do Theatro São Pedro, sob a batuta de Luiz Fernando Malheiro, foi da frenética dança espanhola aos momentos mais líricos e intimistas da partitura com ótimo desempenho.
Espero que a ópera tenha sido filmada e que seja, em breve, exibida pela TV Cultura. Gravarei e a guardarei entre meus favoritos registros de ópera.

3. Referências
- Documentário “Cervantes y la leyenda de Don Quijote”, do Canal Historia: https://www.youtube.com/watch?v=tsv-LQm9xmk
- Don Quijote, de Cervantes: Vídeo Livro – Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=xo7lk6aRjjQ&list=PLkV5SdPARTy5A3XPHBe_FZquTcvoJpYis ; Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=LTP5s0eJgW4&list=PLkV5SdPARTy5-ImPcI60wdfZKuucH9uin
- Curso sobre Don Quijote de Cervantes (Yale): https://www.youtube.com/watch?v=P-D0iXLZWO0&list=PL6B03F6D8A10B2216
- Don Quichotte, de Massenet, com Samuel Ramey no papel título: https://www.youtube.com/watch?v=IM28Rp3tTaE
4 respostas para “De Quijote a Quichotte.”
Encenação maravilhosa. , impecável, pois Takla e como vinho quanto mais velho Melhor
Fabiana: invejável sua capacidade e conhecimento. Adorei e repliquei para um monte de gente da ópera.
Obrigada! Abraço.
Não consegui ingresso para o Dom Quixote, mas acabei conhecendo seu interessantíssimo blog, o que foi muito bom e enriquecedor para mim. Parabéns e muito obrigada, Fabiana!