Nos próximos dias, as duas principais orquestras de São Paulo, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e a Orquestra Sinfônica Municipal (OSM), terão um requiem em sua programação. A primeira é a OSM, que nos dias 12 e 13 de março apresenta, no Theatro Municipal, sob a regência de John Neschling, o Requiem Alemão de Brahms. Já a Osesp executa, de 17 a 19 de março, com Marin Alsop no pódio, o Requiem de Verdi.

No Theatro Municipal o destaque é o baixo-barítono alemão  Albert Dohmen, presença constante no Festival de Bayreuth e na Ópera de Viena, que divide o posto de solista com a soprano brasileira Lina Mendes. Na Sala São Paulo, os holofotes se voltarão para a soprano americana Angela Meade, assídua frequentadora dos principais palcos de seu país, inclusive o do Metropolitan Opera. Completam o quarteto de solistas Michelle Deyoung (mezzo-soprano), Dmytro Popov (tenor) e Nicolas Testé (baixo-barítono).

A Missa de Requiem

Requiem aeternam dona eis, Domine.
(C
oncedei-lhes descanso eterno, ó Senhor.)

É da primeira palavra do texto da missa para os mortos, requiem, ou descanso, repouso, que vem o nome pelo qual a Missa de Requiem é conhecida. Celebrada no passado em um funeral, sétimo dia ou em algum aniversário de morte, a Missa de Requiem foi retirada do ofício da Igreja Católica na década de 1960, com o Concílio Vaticano II.

De modo geral, uma missa possui duas partes: o Ordinário, comum a todas as missas, e o Próprio, que varia com o dia e a intensão da missa. Em geral, quando se trata de uma missa genérica musicada, é o Ordinário que é utilizado pelo compositor. Dele fazem parte Kyrie, Gloria, Credo, Ofertório, Sanctus, Agnus Dei. Na Missa de Requiem, Gloria e Credo são suprimidos. No Agnus Dei, a letra é modificada. Em lugar de “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem” diz-se “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona eis requiem sempiternam.” No Próprio da Missa de Requiem estão Requiem, Gradual, Tract, Sequentia (Dies Irae), Pie Jesus Domine, Exsequiae, Valedictio.

O texto mais antigo da Missa dos Mortes de que se tem notícia data do século IV. O Dies Irae, que fala do Juízo Final (Dia da Ira), só foi incorporado a partir do século XIV. Em música, o mais antigo que sobreviveu foi o de Johannes Ockeghem (1420-1497). Polifônico e para coro a capella e sem Dies Irae, pode ser ouvido no You Tube

Messa di Requiem – Giuseppe Verdi

O Requiem (ou Messa di Requiem) de Giuseppe Verdi (1813-1901) estreou na Igreja de São Marcos, em Milão, em maio de 1874, no primeiro aniversário do falecimento do poeta e político italiano Alessandro Manzoni, para quem a peça foi composta. 

Hans Von Bülow considerou o Requiem uma ópera “em vestimenta de igreja.” De fato, além de conter características melódicas, contrastes, típicos das óperas de Verdi, no Requiem são utilizadas melodias dessas óperas. Um exemplo é o Lacrimosa, ondde Verdi utilizou a ária cantada por Felipe II, em Don Carlo, após a morte do marquês de Posa. Também podem ser ouvidos ecos de Aida, que havia estreado poucos anos antes.

O Dies Irae é a parte mais forte da missa de Verdi. Com tímpanos, coro e trompetes soando no máximo volume, é anunciado o dia da ira:

Dia da Ira, aquele dia
Em que os séculos dissolver-se-ão em cinza,
David com a Sibila será testemunha!

Quanto terror está prestes a ser,
Quando o Juiz estiver para vir,
Em vias de julgar tudo severamente!

Mais tarde, em 1887, Verdi retomaria esse Dias Irae na ópera Otello. Desse modo, a ira do Juízo Final foi comparada com a terrível tempestade da qual surge, com seu Esultate!, Otello, o Juiz, anunciando o sepultamento no mar do orgulho do inimigo e a salvação de seu povo.

Ein Deutsches Requiem (Johannes Brahms)

O Ein Deutsches Requiem (Um Requiem Alemão), Opus 45 de Johannes Brahms (1833-1897), se distingue dos requiems tradicionais, compostos na forma litúrgica das já extintas missas de mortos, em latim. Além de utilizar o idioma alemão (e daí o título), em vez de textos litúrgicos o Requiem Alemão utiliza trechos do Antigo e do Novo Testamentos, segundo a tradução luterana, sem qualquer preocupação litúrgica ou até religiosa. Embora utilize os textos das escrituras, é uma obra profundamente humana.

Composto entre 1865 e 1868, o Requiem Alemão teve sua estréia na Sexta-Feira Santa 12 de abril de 1868, sob a regência do próprio compositor, na Catedral de Bremen. Nessa ocasião, contudo, o quinto movimento ainda não havia sido composto. Esse movimento, para soprano e coro, é um tributo do compositor à memória de sua mãe, morta em 1865.

Para orquestra, coro, soprano e barítono, o Requiem Alemão possui sete movimentos e duração aproximada de 75 minutos — o que faz dele a maior composição de Brahms.

Patrick Tuck, em sua dissertação Brahms’ Ein Deutsches Requiem: Dialetic and the Chromatic Middleground, observa que os três movimentos do Requiem que se iniciam em tonalidade menor — a saber: segundo, terceiro e sexto — sofrem uma mudança para a tonalidade maior correspondente, justamente quando o letra, que falava da mortalidade, passa a falar da salvação eterna, que só pode ser alcançada com a morte e ressurreição. Já os outros quatro movimentos (primeiro, quarto, quinto e sétimo) começam e terminam em tonalidade maior.

1. Primeiro Movimento – Coro e orquestra.

Bem-aventurados os que sofrem aflições,
porque serão consolados.
(Mateus 5:4)

Os que com lágrimas semeiam,
com alegria colherão.
Vão andando e chorando
quando levam a nobre semente,
mas voltam com alegria
trazendo os seus feixes.
(Salmos 126:5-6)

O primeiro movimento se inicia sombrio: cellos e violas dão o tom grave, enquanto violinos, trompetes e outros instrumentos com um timbre mais claro se omitem. Merece atenção a entrada do coro: “Selig sind“, três notas em dois intervalos ascendentes. Essa célula de três notas se repete em outras partes da obra, dando um indício de unidade. Os dois intervalos ascendentes dão a sensação de ascensão no momento em que se fala “Bem-aventurados”. Já no início da próxima estrofe, o coro canta “Os que com lágrimas semeiam” e os dois intervalos anteriores aparecem em sentido inverso, isso é, descendente, em “mit Tränen“, como lágrimas caindo sobre as sementes. Deve-se observar, ainda, que todas as vezes em que o texto é “werden mit Freuden” (“com alegria colherão”), há um crescendo, de modo que a palavra Freuden (alegria) é acentuada. Porém, em nenhum momento, o tom sombrio do movimento é abandonado.

2. Segundo Movimento – Coro e orquestra

Porque toda carne é como a erva
e toda a glória do homem
é como as flores do campo.
A erva seca, e a flor cai.
(I Pedro 1:24)

Assim, então, sede pacientes, queridos irmãos,
até a vinda do Senhor.
Olhai o lavrador que espera
o estimado fruto da terra
e é paciente na espera,
enquanto recebe a chuva da manhã e da tarde.
Assim então, tende paciência.
(Tiago 5:7)

Pois toda carne é como a erva
e toda a glória do homem
é como as flores do campo.
A erva seca
e a flor cai.
Mas a palavra do Senhor perdura eternamente.
(I Pedro 1:24-25)

Os resgatados do Senhor voltarão,
e virão a Sião com júbilo;
eterna alegria estará sobre suas cabeças;
Alegria e felicidade estarão com eles,
e a dor e o pranto deles fugirá.
(Isaías 35:10)

No segundo movimento os instrumentos omitidos no primeiro (violino, trompete, etc) se juntam à orquestra. O movimento começa pesado, com um tempo bem marcado pelo tímpano e a predominância dos naipes masculinos no coro. Esse clima marca toda a primeira estrofe, que transmite as duras advertências de Pedro. Já na segunda estrofe, as palavras doces e consoladoras de Tiago são entoadas com uma melodia leve e lírica, onde prevalecem os naipes femininos. Em seguida, repete-se a primeira estrofe, retornando o clima inicial, de advertência. Esse clima dura até a última frase de Pedro: “Aber des Herrn Wort bleibet in Ewigkeit“, ou seja, “Mas a Palavra do Senhor perdura eternamente”. Neste ponto, ocorre a mudança de tonalidade de menor para maior. Essa mudança é seguida por um forte, enquanto se faz a promessa “Die Erlöseten des Herrn” (“Os resgatados do Senhor voltarão e virão a Sião com júbilo”). O movimento termina, portanto, com um clima bem diferente do início sombrio.

3. Terdeiro Movimento – Barítono, coro e orquestra.

Senhor, mostra-me, então, que devo ter um fim,
que minha vida tem um objetivo, e que devo cumpri-lo.
Eis, meus dias são como um palmo para Ti,
e minha vida é nada diante de Ti.
Ah, todos os homens são como o nada,
e, contudo, vivem tão seguros!
Eis que desaparecem como uma sombra
e, entretanto, preocupam-se em vão;
armazenam e não sabem quem o recolherá.
Então, Senhor, quem poderá consolar-me?
Eu espero em ti.
(Salmos 39:4-7)

As almas dos justos estão nas mãos de Deus
e nenhum padecimento lhes afeta.
(Sabedoria 3:1)

O terceiro movimento se inicia com o solo do barítono entoando uma prece que é, em seguida, reforçada pela repetição do coro. Esse mecanismo se repete algumas vezes durante toda a primeira parte deste movimento. O clima de súplica marca o início do terceiro movimento e se mistura a um clima de reflexão.

A mudança de caráter coincide com a mudança da tonalidade menor para a maior, que se dá quando o coro canta “Ich hoffe auf dich“, ou seja, “Eu espero em Ti”. O clima de súplica/reflexão dá lugar a um de júbilo e esperança, com o coro executando uma fuga, enquanto canta a promessa Der Gerechten Seelen sind in Gottes Hand, und keine Qual rühret se an (“As almas dos justos estão nas mãos de Deus e nenhum padecimento lhes afeta”). Assim termina, também este movimento, de forma bem diferente da que apresentava em seu início.

4. Quarto Movimento – Coro e orquestra.

Que amáveis são as tuas moradas,
Senhor dos Exércitos!
Minha alma anela e suspira
pelas ante-salas do Senhor,
meu corpo e minha alma alegram-se
no Deus vivo.
Bem-aventurados os que na tua casa habitam,
que te louvam eternamente.
(Salmos 84:1-2 e 4)

O quarto movimento é bem mais leve e delicado que os precedentes. Como que querendo demonstrar os suspiros da alma na Casa do Senhor, a única alteração ocorre com a presença de uma fuga, no final, para ilustrar o louvor eterno: “die loben dich immerdar“.

5. Quinto Movimento – Soprano, coro e orquestra.

Agora estais em tristeza,
mas voltarei a ver-vos
e vosso coração regozijar-se-á
e a vossa alegria ninguém poderá tirar .
(João 16:22)

Vede:
Tive um breve tempo
no qual labutei e trabalhei,
e encontrei um grande consolo.
(Eclesiástico 51:27)

Consolar-vos-ei
como uma mãe consola.
(Isaías 66:13)

Conforme já foi observado anteriormente, o quinto movimento é uma clara homenagem à mãe de Brahms. A doce melodia cantada pela soprano, bem como a letra, trazem à mente a figura da mãe. O movimento termina com várias repetições da promessa da mãe: voltarei a ver-vos (“wieder sehen“).

6. Sexto Movimento – Barítono, coro e orquestra

Como aqui carecemos de morada permanente,
mas buscamos a futura.
(Hebreus 13:14)

Eis, eu vos revelarei um segredo:
nem todos dormiremos,
mas todos seremos transformados;
e isto de repente, num piscar de olhos,
no momento da última trombeta.
Porque a trombeta soará,
os mortos ressuscitarão incorruptíveis
e nós seremos transformados.
Então, se cumprirá a palavra
que está escrita:
A morte é tragada na vitória.
Morte, onde está o teu aguilhão?
Inferno, onde está a tua vitória?
(I Coríntios 15:51-52 e 54-55)

Senhor, Tu és digno
de receber a glória, a honra e o poder,
pois Tu criaste todas as coisas,
e pela tua vontade existem
e foram criadas.
(Apocalipse 4:11)

Ao contrário do terceiro movimento, quem inicia o sexto é o coro, e não o barítono. Este só entra no momento de revelar o segredo “Sieh, ich sage euch ein Geheimnis“. Neste movimento está presente a última batalha entre vida e morte e é anunciada a vitória da Vida.

A mudança de Dó menor para Dó maior ocorre enquanto se canta “Herr, du bist würdig zu nehmen Pries und Ehre und Kraft” (“Senhor, Tu és digno de receber a glória, a honra e o poder”). Com este mesmo texto, é feita uma fuga, celebrando a glória de Deus. Evidentemente, já que se trata de um movimento que se iniciou em tom menor e terminou em maior, há uma nítida mudança de clima. O início sóbrio deu lugar à celebração do final.

7. Sétimo Movimento – Coro e orquestra

Bem-aventurados os mortos
que, desde agora, morrem no Senhor.
Sim, o Espírito diz
que repousem do seu trabalho,
pois as suas obras os acompanham.
(Apocalipse 14:13)

No sétimo movimento, prevalece o piano. Delicado, lembra o descanso dos mortos com suas boas-obras. Neste movimento reaparece a bem-aventurança (Selig), retomando o tema do primeiro movimento, porém, aqui, os bem-aventurados são os que morreram no Senhor, não mais os que sofrem aflições. Aqui, as aflições já deram lugar ao consolo e ao descanso eternos. O Requiem termina justamente com a palavra com a qual se iniciou: Bem-aventurados, Selig!

Felizes somos também nós, pelo privilégio de podermos ouvir peça tão inspirada como essa!

A tradução para o português, paralelamente ao original em alemão, pode ser encontrada em http://www.musicaeadoracao.com.br/obras/requiem_brahms_traducao.htm

Para a partitura e midis: http://www.cpdl.org/wiki/index.php/Ein_deutsches_Requiem,_Op._45_(Johannes_Brahms)

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