Oh minha ama da Terra, quando, oh quando, tu acolherás este abandonado em seu seio? Veja, a humanidade o baniu, e ele fugiu desse peito frio e sem coração para ti, para ti! Oh, cuida do solitário, do inquieto, Mãe Universal!
(Gustav Mahler, 1879, em carta para Joseph Steiner.)
Gustav Mahler (1860-1911) tinha apenas 19 anos quando escreveu as palavras acima. Jovem, cheio de vida, já se sentia à parte da sociedade, ligado à natureza. Ecos desses sentimentos podem ser ouvidos, anos mais tarde, em Das Lied von der Erde, composta entre 1907 e 1908. A solidão e a ligação com a natureza lá estão. Porém, a ideia de ser absorvido pela natureza, de voltar ao ventre Mãe Universal, dá lugar, na última estrofe da obra, escrita pelo próprio Mahler, à ideia de que, enquanto a vida do homem é transitória, a Natureza continua, eternamente (o célebre ewig de Mahler), com seus ciclos:
Eu procuro repouso para o meu solitário coração.
Eu caminho para a minha terra, o meu lugar.
Eu nunca mais vaguearei na distância.
O meu coração está tranquilo e aguarda a sua
hora!Em toda parte a amada terra
floresce na primavera e torna a verdejar!
Em toda a parte, eternamente, resplandece o azul
no horizonte!
Eternamente… eternamente… (Ewig… ewig...)
(Der Abschied – A Despedida)
Como observa o tenor Jonas Kaufmann em entrevista publicada na edição de junho da revista do Musikverein de Viena, a transitoriedade, para cantores, é um tema bastante especial, já que cada apresentação é um momento único, impossível de ser repetido, que morre ali. “Eu acho que nenhuma arte é mais transitório do que a cantar”, diz Kaufmann. “A coisa especial da nossa forma de arte é que ela deve voltar a ser feita a cada noite e cada noite é diferente”.
Das Lied von der Erde é composta por seis canções, interpretadas alternadamente por tenor e contralto (ou barítono). A última e mais célebre, Der Abschied (A Despedida), para contralto (barítono), cujos versos finais estão transcritos acima, tem aproximadamente a mesma duração das cinco anteriores juntas. É o grande fecho, que não é um desfecho nem textual (eternamente, ewig) e nem musicalmente. A música parece conseguir o que o Mahler de 19 anos desejava e o de quase 50 não vislumbra mais em seu horizonte: dissolve-se no ar, incorporando-se ao ar, à Natureza.
Em seu livro sobre Mahler, Bruno Walter (1876-1962) conta que, até sua morte em 1911, o compositor sempre dirigiu a estreia de suas obras. Das Lied von der Erde e a Nona Sinfonia foram, porém, exceções. “Alma Mahler me confiou essas duas partituras para una última revisão antes de serem impressas”, conta Walter. “Em novembro de 1911, seis meses depois da morte de Mahler, dirigi a estreia de Das Lied von der Erde em Munique, e no principio de 1912 o da Nova em Viena. Era una grande responsabilidade ocupar assim o lugar de meu grande amigo e apresentar suas obras ao mundo, mas era também o cumprimento de una especie de missão a que me havia consagrado quando, comovido pela audição da Primera Sinfonia em Hamburgo, havia decidido colocar-me a serviço de sua obra.”
Bruno Walter aponta Das Lied von der Erde como a obra mais pessoal do amigo compositor. Para Walter, trata-se da “obra onde sem dúvida se expressa melhor seu eu profundo, ao mesmo tempo perturbado e perturbador (…). Sua linguagem é tão desconcertante, tão subjetiva e tão difícil de abordar como a de suas últimas sinfonias. Porém, o que desconcerta mais em Mahler é sempre a alma ardente e não a frieza experimental. Contudo, este espírito se comunica com qualquer um que seja capaz de vibrar. Aqui, mais facilmente talvez graças ao estranho encanto dos poemas chineses nos quais Mahler encontrou, no umbral da morte, una fonte de inspiração para o colorido fatal de suas melodias.”
Para Kaufmann, é um “trabalho de luto. Enquanto trabalhava em Das Lied von der Erde, faleceu sua filha Maria Anna, com quatro anos de idades, de difteria. Então sua renúncia forçada como diretor da Ópera de Viena, e, finalmente, o diagnóstico de doença cardíaca grave – neste contexto, pode-se entender muito bem por que a última canção, intitulada Despedida, contendo uma marcha fúnebre, nos transporta ao desfecho de um longo calvário”.
Com texto baseado em sete partes de Die Chinesische Flöte (A Flauta Chinesa. 1907) de Hans Bethge, que por sua vez se baseou na tradução de poemas chineses, além de pessoal, de expor a alma e o luto de Mahler, Das Lied também expõe a alma Vienense. Não podemos deixar de pensar na obra quando lemos as palavras do crítico musical vienense Max Graf (1873-1958) em seu livro Legend of a Musical City: the story of Vienna, referindo-se ao vienense do século XIX: “O vienense se considerava indestrutível mesmo em tempos difíceis. Ele nasceu otimista. Essa qualidade, juntamente com sua sensibilidade e sua apreciação da beleza da natureza, fez dele um músico. Sua atitude despreocupada, descuidada em relação à vida, ele expressa cantando, brincando e dançando, bebendo vinho nas tabernas, nos festivais nas verdes vilas, escalando montanhas. Cantavam ou ouviam música porque queriam beber, e bebiam porque queriam cantar”.
Embora na obra de Mahler apareça o homem ligado à natureza, brincando, cantando, dançando e bebendo, o tom predominante não é otimista ou despreocupado, superficial. O que domina, como observou Leonard Bernstein em seu vídeo feito durante o ensaio com a Filarmônica de Israel (e que está em sua caixa com o integral das sinfonias de Mahler), é a dicotomia. Dicotomia entre a agitação de jovens e o lago parado, entre o sol e a lua, a vida e a morte e, sobretudo, entre o interior e o mundo externo, a sociedade. Dessa forma, Das Lied reflete o caráter da Viena do fim do século XIX, a Viena fin-de-siècle.
No fim do século XIX, a vida da sociedade vienense começou a mudar em todos os aspectos. Politicamente surgiram incertezas abalando o conforto da sociedade (em poucos anos eclodiria a Grande Guerra); o anti-semitismo começou a dar as caras, forçando Mahler, como observou Kaufmann, a deixar o posto de diretor da Ópera de Viena; na arte, a Wien Secession, ou o movimento de Secessão, uniu artistas de todas as áreas, como Gustav Klimt, Koloman Moser, Josef Hoffmann, Max Klinger, etc, que com a romperam com a Künstlerhaus vienense, que para eles havia se tornado estanque, conservadora; na psicologia, Freud dava os primeiros passos na fundação da psicanálise; a música buscava se reinventar à sombra de Beethoven e Wagner.
Embora não houvesse um estilo artístico específico que unisse os membros da Secessão, existia um conceito de arte completa, a Gesamtkunstwerk, usando vários meios para se expressar. Um dos eventos mais marcantes da Secessão foi a sua décima quarta exposição (1902), em que Beethoven era o homenageado.

“Na primeira vez em que [Mahler] me falou de Das Lied von der Erde a chamou de ‘uma sinfonia de lieder‘”, conta Bruno Walter em seu livro. “Havia planejado fazer dela sua Nova; depois mudou de ideia. Pensando que para Beethoven e para Bruckner esse número nove havia marcado o fim, vacilava em desafiar o destino”. Quanto ao caráter sinfônico da obra, “não há canções com acompanhamento orquestral, mas o diálogo entre orquestra e cantores”, diz Kaufmann. “O que começou o cantor, é muitas vezes completado pela orquestra e vice-versa”. Seguindo Wagner, seu grande ídolo, e o último movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, Mahler não submete a música ao texto. Ao contrário, o texto existe em função da música. Nos versos inseridos por Mahler no último movimento, nota-se uma preocupação com os sons das palavras, e não apenas seu sentido. Com várias camadas musicais, com melodia passando de um instrumento ou grupo de instrumentos (incluindo os cantores) para outro, Mahler seguiu o Klangfarbenmelodie wagneriano. Desse modo, palavras e ideias são expressas musicalmente. Como em uma sinfonia de seis movimentos — Maher já havia abandonado a sinfonia de quatro movimentos há tempo –, os cantores tornam-se instrumentos da orquestra.
Bruno Walter conta, em seu livro, que Mahler lhe deu o manuscrito para que o examinasse. “Quando fui devolvê-la, quase incapaz de pronunciar una palavra, a abriu na página da ‘Despedida’, dizendo: ‘O que lhe parece? Se pode suportar? Não levará as pessoas a por fim em seus dias? Depois, indicando-me as dificuldades rítmicas, brincou: ‘Você tem alguma ideia sobre como se há de reger isso? Eu não!’” Não é à toa. Uma das formas de expressar a tensão, a dicotomia entre o mundo interior e o exterior, é através de mudanças rítmicas que quase chegam a inviabilizar as barras de compasso. No final do último movimento o ritmo se dissolve, possibilitando, no ewig, o efeito acima citado.
Dentre as formas de expressar dicotomia, está o contraste entre as duas vozes, principalmente quando uma contralto ou mezzo-soprano alterna com o tenor. Há que se observar, inclusive, a diferença de caráter entre as canções interpretadas pelos dois cantores. A mezzo fica com canções mais introspectivas, reflexivas, de orquestração mais leve. Já as canções do tenor, mais extrovertidas, se referem, todas à bebida, ao vinho, têm um tom mais agitado, frenético, às vezes até urgente, como em Das Trinklied vom Jammer der Erde, a primeira canção.
Jonas Kaufmann, porém, um entusiasta da obra, declarou sempre ter sentido inveja dos barítonos e contraltos que cantavam os movimentos que ele, um tenor, não podia cantar. Dentre esses movimentos, é bom lembrar, está o último, Der Abschied, a monumental Despedida. Para resolver seu “trauma”, Kaufmann foi a Viena. Mas não buscou o divã do Dr. Freud. Foi no Musikverein, acompanhado pela Filarmônica de Viena e sob a regência de Jonathan Nott (que substituía Daniele Gatti). No templo da música da cidade em que Mahler morou, a poucos passos do Prédio da Secessão, Jonas Kaufmann cantou todas as seis canções, a totalidade da obra dessa arte.
Na entrevista, Kaufmann admitiu que a mesma voz interpretando todas as canções ameniza o contraste acima apontado. Porém, ele lembrou que há uma unidade, um arco que as conduz do início ao fim e poder percorrer esse arco integralmente era o que o excitava. Para ele, nesse grande arco musical, há mais fluxo da voz nas canções de contralto/barítono. De fato, foi justamente nessas canções, até então “proibidas” para ele, em que seus sublimes pianíssimos tiveram mais espaço. E pianissimos profundos, no registro grave.
Bruno Walter, em carta a Wolfang Stresemann escrita em dezembro de 1957, comenta a possibilidade de Dietrich Fischer-Dieskau — um barítono, portanto –, vir a cantar as partes de contralto. “Quando se estreou Das Lied von der Erde (estreia mundial), havia escolhido o grande artista [o barítono] Friedrich Weidemann, tendo em conta que a forma em que Mahler havia escrito a obra me permitia escolher entre uma contralto e um barítono. ‘Nunca mais’, declarei, e desde esse primeiro concerto tenho escolhido sempre uma contralto para essa parte (…). Diga simplesmente a Fischer-Dieskau, a quem tenho na maior estima, que duas vozes de homem não convêm à obra. Mahler não ouviu nunca Das Lied; mas pensando bem, estou convencido de que se a houvesse escutado, teria reconhecido também que era um erro confiar três canções a um barítono”.
Felizmente Fischer-Dieskau desobedeceu e hoje temos o maravilhoso registro em que ele e Fritz Wunderlich, juntamente com a Sinfônica de Viena, interpretam a obra sob a regência de Josef Krips. Porém, também na versão com barítono, hoje em dia bastante comum, perde-se consideravelmente o contraste. Cada escolha que se faz implica em perdas e ganhos. Se por um lado perdemos o contraste, por outro ganhamos a interpretação de Fischer-Dieskau e de Jonas Kaufmann.
No caso de Kaufmann, numa sala lotada, com pessoas em pé amontoadas até nos cantos do palco, após, graças a alguma desistência, conseguir um dos concorridos ingressos, pudemos conferir o discurso dialético dos sentimentos de vida e morte agindo sempre no mesmo intérprete, na mesma alma; os contrastes entre as canções transmitidos unicamente através de nuances da interpretação, sem o auxílio da alternância entre timbres e personalidades distintas.
Sua voz aveludada misturou-se aos naipes da orquestra sem se sobressair muito como solista, mas também sem se deixar encobrir. Seu registro foi explorado até o limite do grave. Sua voz de tenor, embora não emita aquele som envolvente dos grandes barítonos, não vacilou, soou firme. Absolutamente concentrado, Kaufmann conferiu interpretação profunda e refinada à obra de Mahler.
Na plateia, um clima de quase sacralidade. Era nítida a consciência de que estávamos vivendo um momento único que se desfez no ewig. regido, por Nott, com movimentos circulares.,
Uma resposta para “Mahler e o tenor solitário: Jonas Kaufmann interpreta Das Lied von der Erde.”
Obrigado por compartilhar essa experiência. Voltei de Viena há 40 dias, lamentando não poder ficar para esse grande concerto.